São Paulo, sexta-feira, 16 de agosto de 1996
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Um carioca se mete onde não devia

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Se me perguntarem qual o melhor tipo da literatura nacional, e, por conseguinte, da literatura carioca, eu não citaria nem Braz Cubas nem Quincas Borba, mas a comadre de as "Memórias de Um Sargento de Milícias".
Como alguns personagens secundários de Shakespeare, Dostoievski e Eça de Queiroz, a comadre de Manuel Antônio de Almeida seria aquilo que no cinema chamam de "coadjuvante": rouba todas as cenas em que aparece e, bem ou mal, influi e até determina a trama geral.
Para falar a verdade, a comadre não se mete onde não deve. Os outros, ou melhor, o mundo é que se mete com ela, pelo menos, esse é o seu ponto de vista -que, afinal, é o que conta.
Evidente que resulta em um tipo universal, pois todos nós, queiramos ou não, somos uma espécie de comadres: por mais que tratemos da própria vida, e todos temos problemas de sobra para isso, a vida dos outros sempre nos encontra disponíveis para uma intriga, ou, na mais ética das hipóteses, para um interesse.
Vai daí, semana passada andei por São Paulo, vi e ouvi coisas, a começar por uma baita poluição que lá de cima, do jato da ponte-aérea, parecia um sudário empoeirado amortalhando a cidade.
Como qualquer forasteiro, senti-me no direito de interrogar o motorista do táxi que me levou ao hotel. Aliás, nem precisei interrogar nada, ele foi falando aquilo que o entupia e, do seu ponto de vista, achava que podia me interessar. Falou maravilhas de Maluf e esculhambou devidamente dona Erundina, que ele considera a besta-negra postada pelo destino para, segundo suas palavras, "esmerdiar a cidade".
Não costumo bancar o sábio, mas mantive um silêncio digno de um areopagita ouvindo e -como um discípulo de Platão e Aristóteles- guardando.
Acredito que se deva dar crédito a essa espécie de informação. Profissionalmente, devo aos motoristas de táxi das cidades que visito ou onde tenho de trabalhar uma síntese que parece arbitrária e fragmentada, mas termina sendo a conclusão final depois de dias consumidos em pesquisas e depoimentos.
Foi assim na minha primeira cobertura internacional, em Buenos Aires, na crise de 1962 que afastou o presidente Arturo Frondizi do poder, dando início a uma série de outras crises que terminaram na ditadura militar de lá. No trajeto do aeroporto para o hotel, perguntei ao motorista como ia a coisa, e ele me respondeu com uma única palavra: "Uma palhaçada!"
Passei uma semana ouvindo políticos, militares, intelectuais, diplomatas, todas as noites me reunia com os correspondentes estrangeiros (que eles chamam pelo feio nome de "corresponsal"), tive acesso à Casa Rosada e à residência presidencial de Olivos, enfim, procurei me abastecer de dados e perspectivas sobre a crise daquele ano e cheguei à mesma conclusão do motorista. Poderia ter voltado no mesmo táxi para o aeroporto.
Anos depois, em 1976, repetiu-se a mesma experiência. Fui cobrir as eleições daquele ano na Itália, as pesquisas indicavam que os comunistas ganhariam dos democratas-cristãos, os navios da Otan se movimentavam pelo Mediterrâneo, a vitória de Berlinguer desequilibraria o tabuleiro da Guerra Fria, enfim, a coisa podia se complicar.
O motorista que me levou de Fiumicino para o Imperiale, na Via Veneto, teve tempo de sobra para dar sua opinião, que no fundo era uma conclusão: "Vai dar em nada, é tudo a mesma coisa!". A "stessa cosa" do motorista se confirmou, perdi um tempão na Associazione della Stampa Estera, ali perto da Piazza San Silvestro, ouvindo cientistas políticos, diplomatas, militares da Otan e do Pacto de Varsóvia para chegar ao mesmo resultado.
Voltando a São Paulo. Do hotel fui à TV Cultura e encarei outro motorista, que falava menos mas dizia a mesma coisa. Maluf melhorara a cidade, temia que Erundina fosse eleita e acabasse com o que estava certo e implantasse o errado. Perguntei pelo Serra, e ele disse que não confiava em um professor, a cidade precisava de um fazedor, e Maluf fazia.
No outro dia, peguei novo táxi e novo motorista. Esse era nordestino, estava em dilacerante crise de consciência cívica e existencial.
Como paraibano, achava um dever de consciência votar em Erundina. E, como além de paraibano era do PT, tinha duplo motivo para votar nela. O diabo é que ele passava de oito a 12 horas por dia no volante de um carro e temia que tudo piorasse na cidade.
Fechando túneis e paralisando obras viárias, a sua candidata podia, se tudo desse certo, beneficiar gerações futuras de paulistanos, mas o prejudicaria no ganha-pão imediato.
Espantou-me devidamente quando, ao invés de ser perguntado, perguntou-me sobre em quem deveria votar. Fui sábio e prudente: aconselhei-o a votar em quem sua consciência mandasse votar. Ele apreciou o meu conselho e apreciou mais a gorjeta que lhe dei. No fundo, acho que ele vai votar exatamente contra a sua consciência.
No dia seguinte, já de volta ao Rio, depois da caminhada por uma Lagoa cheia de sol, fui ler as folhas e tomei conhecimento de que Erundina havia caído nas pesquisas. Suplementarmente, que não se deve confiar na consciência dos motoristas de táxi.

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