São Paulo, sexta-feira, 16 de agosto de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Eleição, obra de Deus e do diabo

JOSÉ SARNEY

Certa noite, no princípio da minha vida política, candidato a deputado no interior do Maranhão, depois de estafante jornada de comícios, reuniões, passeatas, apertos de mão, manifestações de apoio e recusas enérgicas de apoio, estávamos descansando, candidatos e cabos eleitorais, quando o Cavour Maciel, aspirante a prefeito de Penalva, município na Baixada, deu a sentença: "Quem inventou eleição está no inferno".
José Marques, cabo eleitoral, reagiu pronto: "Pois para mim está no céu. Ô tempo bom! Eleitor passa bem, é abraço para cá, beijo para lá, convites para almoço, para jantar, bailes e esperanças. É a hora do já fiz e do 'tou fazendo. Já fiz isto, aquilo e mais aquilo e estou fazendo mais e mais..." Cavour não se rendeu: "É obra do diabo".
Agora, aqueles tempos são lembrados como a era romântica da política, era o contacto corpo-a-corpo, os compromissos do fio da barba. Hoje, estamos na era da televisão. Campanha é TV e a disputa não é mais entre os candidatos, é entre as produtoras e os marqueteiros. Eles são os donos da festa. Os candidatos nem sabem o que estão prometendo, é tudo feito nos laboratórios de análises de pesquisas e na estratégia do tempo exato de encher a cabeça dos eleitores.
Na última eleição francesa, "Le Figaro", diante dessa lavagem cerebral, pediu na primeira página: "Libertemos os eleitores". Pois eram os eleitores que ficavam prisioneiros dos candidatos, e não estes deles.
Veja-se o que ocorre no Rio de Janeiro e São Paulo. A eleição está sendo resolvida em construção de imagens eletrônicas. O próprio presidente da República, disseram-me outro dia, não tem mais a liberdade que tinha para governar. É um governante moderno: "Só toma decisão na base da pesquisa."
É esse mundo de novos valores, concepções, métodos e engrenagens que fazem estes tempos fascinantes. O Partido Democrata ouviu de Clinton que "cinco minutos de TV valem mais do que toda a máquina do partido".
Agora, então, com a entrada da votação eletrônica, a coisa vai ser bem mais diferente. Desaparece o último vínculo pessoal com o candidato. Este não é mais ele e sim um número. O eleitor digita o número, aparece o retrato que corresponde ao número e então o coitado aperta o botão e pronto. O homem está escolhido.
É um grande avanço no Brasil o esforço que a Justiça Eleitoral está fazendo no sentido de aprimorar a verdade das urnas. Vem desde o primeiro e grande passo da substituição do velho título eleitoral, pelo ministro Nery, até o estágio atual passando pelos ministros Pertence, Veloso e, hoje, Marco Aurélio, de olho no computador. Enquanto isso, eu ligo a televisão e vejo um candidato desesperado, gritando a todo vapor: "Não esqueçam, eu sou o 22,22,22,22......."
É, eleição é coisa de Deus e o do diabo, mas sem ela o povo não exerce sua soberania. Desde quando as ordens religiosas a descobriram, faz milênios, passando pelos romanos que não tinham urnas e sim palmas (a aclamação de hoje), até o nosso computador.

Texto Anterior: Obra dá voto
Próximo Texto: FIGURANTE; ROUPA SUJA
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.