São Paulo, sábado, 17 de agosto de 1996
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Globalização: mito ou realidade?

GIORGIO ROMANO SCHUTTE

Recentemente foram publicados neste caderno artigos considerando a globalização nada mais que um mito.
Antes de mais nada é necessário desmitificar a opinião expressada nos textos, segundo a qual a atenção sobre o tema seria fruto do "eterno provincianismo" brasileiro.
Um dos pontos mais interessantes no debate sobre a globalização é exatamente a forma universal como é apresentado e utilizado para justificar algumas políticas antipopulares: nos países europeus a discussão é feita da mesma forma e com intensidade similar.
O ministro da Fazenda da Holanda, por exemplo, organizou no ano passado uma conferência nacional sobre globalização, da qual participou toda a nata do empresariado e dos economistas.
O evento foi transmitido ao vivo pela televisão e se discutiu um dia inteiro sem que o público pudesse entender o significado da palavra.
A conclusão dos participantes foi que a Holanda deveria rapidamente fazer reformas na Previdência Social, flexibilizar, desregulamentar e, dessa forma, diminuir o "custo Holanda" para se tornar competitiva no mercado internacional e enfrentar a realidade da economia globalizada.
Na Ásia, a mesma justificativa é utilizada pelo governo da Coréia do Sul para convencer os sindicatos a moderar suas reivindicações.
Desde os anos 50 verificamos que o crescimento do comércio é constantemente maior que o da própria economia mundial e, além disso, que os investimentos estrangeiros diretos, por sua vez, crescem mais do que o comércio internacional.
É esse processo que aumenta a integração das economias nacionais. A partir de meados dos anos 80 assistimos a um aumento espetacular dos investimentos estrangeiros diretos: entre 1985 e 1990, a média do crescimento ficou em torno de 25% ao ano, triplicando assim o estoque dos investimentos externos no mundo, se forem comparados o início da década de 80 com o da década de 90.
Esses investimentos externos diretos tornaram-se peça-chave da nova fase da internacionalização, que pode ser chamada de globalização.
Destacam-se aqui aquisições e fusões de empresas e alianças estratégicas entre os diferentes atores (empresas multinacionais, terceiras, governos e sindicatos que optaram por vestir essa camisa).
É verdade que no geral a poupança interna continua a ser muito mais importante na formação de capital, mas não se pode esquecer um dado fundamental -o aumento dos investimentos externos diretos a partir de meados dos anos 80 reflete a rapidez do desenvolvimento tecnológico (microeletrônica, novos materiais e biotecnologia), que traz consigo novos conceitos de produção também do ponto de vista da organização da produção, como a terceirização e flexibilização.
O desenvolvimento das tecnologias de ponta vem sendo feito internacionalmente e sob controle das empresas multinacionais.
Uma multinacional pode chegar a controlar toda a cadeia produtiva, a partir de sua capacidade tecnológica e de organização, e reunir os vários fatores de produção em nível internacional, sem se comprometer diretamente com a produção em si.
As operações comerciais realizadas no interior dessas empresas equivalem hoje a pelo menos um terço do comércio mundial.
Ou seja, não basta olhar a quantidade, mas deve-se considerar também a qualidade dos investimentos. Só assim pode-se entender a rápida divulgação e homogeneização dos conceitos relacionados a novas formas de organização e as mudanças na estrutura das economias e padrões de consumo.
Cabe valorizar, ainda, o crescimento da internacionalização do sistema financeiro, olhando apenas o lado quantitativo.
Aproveitando o avanço na área de telecomunicações e tecnologia de informática, o sistema financeiro aumentou sua capacidade de processar constantemente transações ao longo das 24 horas do dia, em nível global, dando muita dor de cabeça às autoridades do México e da Europa.
Nesta última, alguns anos atrás, a especulação provocou grandes desvalorizações das moedas sueca e espanhola.
Subestimar a nova fase de internacionalização da economia é tão errado quanto considerá-la uma fase natural, à qual temos de nos adequar como um navegante ao sabor da correnteza.
Cabe lembrar que a segunda revolução tecnológica, com sua linha de montagem, criou as possibilidades para a sociedade de consumo e começou muito antes das políticas sociais e governamentais que pretendiam instaurar um equilíbrio.
Sonhar com o Estado social ("Welfare State") no Brasil na época em que surgiu o fordismo era tão estranho quanto hoje refletir sobre uma Federação democrática mundial.
A globalização é ligada a um projeto político-econômico detrás do qual se identificam interesses socioeconômicos.
É também um projeto ideológico, já que tenta convencer a opinião pública de que os sindicatos e autoridades governamentais devem enquadrar-se nessa lógica.
O que deveria ocupar o centro das atenções é o limite da desregulamentação, uma vez que ela vem criando insegurança, caos no sistema financeiro e mais exclusão, aumentando as diferenças sociais em todas as partes do mundo.
Não se pode aceitar a ideologia segundo a qual essa é a única e sagrada modernidade.

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