São Paulo, domingo, 18 de agosto de 1996
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O Brasil e a regulamentação do petróleo

LUIZ PINGUELLI ROSA

Têm saído na imprensa matérias sobre a regulamentação da emenda constitucional do monopólio do petróleo exercido pela União. O projeto do governo tem insuficiências, mas aquilo que tem sido proposto nesses artigos é muito pior do que o projeto do governo. No fundo, defendem a inviabilização da Petrobrás como empresa.
Uma visão dominante entre os economistas liberais é que o Brasil não pode ter interesses nacionais e deve ficar ao sabor do jogo dos mercados e dos investidores estrangeiros. O resultado é a desindustrialização crescente, preocupante num país com crescimento demográfico e enorme base territorial. O caso da Metal Leve é gritante.
Muitos se comportam como se o Brasil tivesse perdido uma guerra, como na França, sob a ocupação nazista. É pior do que o colaboracionismo, porque não houve o constrangimento da derrota militar para o Brasil pagar o preço de uma indenização de guerra e abdicar de sua soberania. A China e a Índia não abdicaram de seus interesses nacionais e nem por isso deixam de participar da globalização da economia. Também a Coréia do Sul e outros países asiáticos se integram na globalização mantendo, entretanto, uma visão clara dos seus próprios interesses, como fazem a Comunidade Européia, os EUA e o Japão. Infelizmente, na América Latina prevalece um quadro diferente, como se todos tivéssemos perdido uma guerra das Malvinas.
No caso do petróleo, vai-se votar a regulamentação sem nenhum objetivo claro.
O que se deseja? Qual é o planejamento estratégico? Produzir mais petróleo? Por quê? Por que crescer de forma precipitada a produção de petróleo no momento em que está barato no mercado internacional? Temos o álcool, inclusive, que, apesar de caro, provoca excedente na produção de gasolina. Vai-se importar derivados, com risco de dumping e agravando o desemprego?
Possuímos no Brasil reservas da ordem de 10 bilhões de barris de petróleo e de gás, dos quais são comprovados cerca de 5 bilhões a 6 bilhões. Hipoteticamente, poderíamos descobrir mais 16 bilhões em um modelo com base em dados realistas da geologia brasileira. Entretanto, o relatório da Câmara dos Deputados, em que se baseou a emenda constitucional aprovada, cita que o Brasil produz percentual inferior a 1% do petróleo mundial, enquanto detém 6% das bacias sedimentares mundiais, induzindo ao erro de que essa proporção pudesse valer na existência do petróleo. O petróleo ocorre num volume e em profundidade, e o argumento da área, no mínimo, ignora a geometria. Mas este volume é diferenciado por características geológicas, mostrando a ignorância em geociências também.
Aonde se quer chegar? Não devemos nos iludir que o Brasil tenha mais petróleo do que realmente existe para justificar a exploração em níveis predatórios, com esgotamento rápido de suas reservas. Se o Brasil tem hoje uma demanda da ordem de 500 milhões de barris/ano, essa demanda deverá atingir, daqui a três anos, 1 bilhão de barris/ano.
Portanto, uma conta simples mostra que a duração presumida do petróleo brasileiro, se chegarmos à auto-suficiência, ou seja, se produzirmos todo o petróleo consumido no Brasil a curto prazo, chegaria talvez à terceira década do próximo século, não mais do que isso. Se as multinacionais exportarem petróleo barato para suas sucursais, ele acabará antes.
O mundo todo tem cerca de 1 trilhão de barris provados e talvez possa expandir isso em 50%. Com a demanda mundial da ordem de 70 milhões de barris/dia, ou seja, 25 bilhões de barris/ano, isto dá algo entre 40 e 60 anos de duração para as reservas mundiais.
Temos que pensar estrategicamente que a Petrobrás detém a tecnologia e pode financiar a si própria com a renda do petróleo, desde que venda seus derivados às distribuidoras por preços corretos. É um dos raros instrumentos para o Brasil ter uma política coerente para a população. O próprio Daniel Yergin no seu livro sobre petróleo, tão difundido e usado como argumento para a quebra do monopólio, diz explicitamente que o petróleo continua sendo estratégico e não é correto dizer que seja uma "commodity", como querem os economistas liberais. Mas não tomam conhecimento disso aqueles que só lêem relatórios do Banco Mundial. Neste quadro, o que devemos observar é que há pontos importantes da regulamentação que poderão impedir o Brasil de ter uma estratégia própria de longo prazo.
Foi feito pela Coppe (Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Engenharia) um estudo sobre os projetos de regulamentação propostos no Congresso, apresentado em seminário realizado em agosto, na UFRJ, com a participação de especialistas, dirigentes de empresas e pessoas ligadas ao setor privado. Há modelos para a abertura com a Petrobrás, como os contratos de partilha, com concessões que não sejam danosas ao país, mas, infelizmente, há algumas propostas, como a que visa partir a Petrobrás, retirando-lhe os dutos e os tanques, que podem ser desastrosas se forem aprovadas pelo Congresso.
O melhor instrumento para a política do petróleo deverá ser a Petrobrás e não uma agência dirigida por poucas pessoas, expostas a todas as pressões e sem tradição ética nem espírito de corpo para a defesa dos interesses do país, quando se conflitarem com os de poderosas multinacionais, com apoio de Estados estrangeiros.
Devemos lembrar que o petróleo continua sendo monopólio da União, e que o presidente Fernando Henrique Cardoso comprometeu-se, na votação da emenda constitucional, a manter a integridade da Petrobrás. Entretanto, pelo menos um diretor do Banco Central já propôs publicamente privatizá-la e há um estudo sendo feito no BNDES para esse fim.
A regulamentação que será aprovada poderá refletir esse objetivo escondido. No caso da Agência de Energia Elétrica (Aneel), a proposta do governo foi uma cortina de fumaça e aprovou-se outra, ultra neoliberal, que criou um poder paralelo elétrico, acima do Ministério de Minas e Energia, para proteger as multinacionais e estatais estrangeiras que estão comprando o setor.

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