São Paulo, domingo, 18 de agosto de 1996
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Memórias de uma língua destruída

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O iídiche é uma língua européia da família germânica (como o inglês e o holandês, por exemplo), que se formou, com os outros vernáculos continentais, na Idade Média e, embora derivado do médio alemão, foi enriquecido sobretudo por contribuições dos idiomas eslavos e do hebraico. Considerá-lo um mero dialeto é tão despropositado quanto chamar o catalão, o galego ou mesmo o português de variantes do espanhol.
No seu apogeu, cerca de meio século atrás, ele possuía mais falantes (na Europa Oriental e nas Américas) do que boa parte das línguas européias reconhecidas e dispunha tanto de uma literatura quanto de um teatro atuantes e vigorosos.
O iídiche, ainda há pouco, não era uma relíquia linguística, mas a fala de uma população urbana, altamente alfabetizada, que tinha seus livros, sua grande imprensa e um dos maiores partidos socialistas do planeta. Hoje, no entanto, está à beira da extinção. Como e por quê?
A história dessa língua, de sua literatura e de seu final trágico são o tema de "Aventuras de Uma Língua Errante", de Jacó Guinsburg, crítico e estudioso do teatro, tradutor, especialista em temas judaicos e fundador da Editora Perspectiva, para a qual organizou, em 13 volumes, um amplo painel que recolhe os principais documentos da vida e da cultura do povo judeu.
O presente volume, desdobramento de sua tese de doutorado, pode ser chamado de sua obra máxima. Se bem que afirme enfaticamente não pretender realizar um levantamento sistemático do que se pensou e se escreveu em ídiche, ele acaba, ao longo de mais de 500 páginas, realizando, com elegância, precisão e minudência, precisamente isso. Mas também muito mais.
Origens
O iídiche, conforme expõe o autor, era a língua dos judeus "ashkenazim" ("alemães", em hebraico; o outro grupo é o dos "sefaradim", ou seja, "espanhóis"), que, nascida à beira do Reno, tornou-se o idioma comum das comunidades judaicas da Europa Centro-Oriental, contraposta ao hebraico, reservado para o culto religioso e para as discussões doutas.
Seu final se deu de três maneiras: os judeus que emigraram para as Américas acabaram adotando as línguas locais; os que foram para a Palestina e criaram Israel, optaram pelo hebraico; e o núcleo original foi na sua maioria exterminado pelo Holocausto (enquanto os sobreviventes eram silenciados pela política soviética).
As três maneiras acima se complementam e têm uma raiz comum: o anti-semitismo europeu e cristão que marginalizou e transformou em pária o povo que falava o iídiche.
O livro de Jacó Guinsburg corresponde, portanto, a um capítulo essencial -mas geralmente ignorado ou omitido- da história, revelando, na trajetória de uma cultura exemplarmente européia, tanto o que o Ocidente podia gerar quanto o que, na sua sanha autofágica e homicida, foi capaz de destruir.

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