São Paulo, domingo, 18 de agosto de 1996
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O infindável Mário

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Mário de Andrade é provavelmente um assunto inesgotável; "eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta", dizia num poema famoso, em que ecoa a voz de Walt Whitman. A obra deste poeta, folclorista, administrador cultural, romancista, educador, crítico de artes plásticas e de música assemelha-se à imagem de um Brasil que ele próprio ajudou a criar e a descobrir: país fervilhante, inquieto, riquíssimo, incompleto nos seus contrastes de rudeza e de progresso.
Se todos estes adjetivos parecem um pouco clichê nos dias de hoje, não era assim nos tempos de Mário de Andrade; o projeto de constituir aqui uma civilização européia, que negasse a cultura popular e a circunstância tropical, só a partir de 1922 veio a ser combatido -com as armas da sátira, da pesquisa etnográfica, do nacionalismo político, da modernidade artística.
Enquanto esse combate se esboçava no Brasil, a Europa conhecia um movimento paralelo e semelhante: tratava-se de negar a velha civilização burguesa, mercantil, em nome de um dinamismo novo -o da máquina, do progresso técnico, do movimento ascendente do proletariado, do inconsciente freudiano, de qualquer coisa, enfim, que vitalizasse ou revolucionasse a ordem estabelecida.
O que na Europa era decadência, envelhecimento, ou, nas propostas politicamente mais avançadas, opressão de classe fadada a desaparecer, era visto no Brasil como farsa, como aparato ornamental, civilização postiça.
Se esta comparação é adequada, talvez se possa sugerir, então, que a diferença básica entre o modernismo europeu e o brasileiro esteja no modo com que encaravam o adversário a enfrentar. A velha ordem, no caso europeu, "sufocava" o real; entravava seu pleno desenvolvimento; era condenável porque "errada" perante as promessas e perspectivas que se abriam para a humanidade.
No caso do modernismo brasileiro, a civilização europeizante não era vista, a rigor, como algo que "sufocasse" o real, mas sim como uma superposição ridícula ao meio; era condenável por ser inautêntica, por ser limitada, mais do que "limitadora", diante do Brasil. Menos do que um grito de protesto contra uma situação irrespirável, era um ato de euforia, uma espécie de brado triunfal: havia em 22 a confiança de que, descobrindo a nós mesmos como "bárbaros", estávamos sendo modernos sem saber. Ou sabendo: a alta cultura, a sofisticação estética e o contato com as vanguardas européias eram como que sancionadas por nossa condição morena, subequatorial -desde que a assumíssemos.
Época das mais propícias, portanto, para o surgimento de uma figura de grande intelectual e artista como foi Mário de Andrade. Assumir uma identidade -a de brasileiro- e uma outra -de intelectual refinado- não era problema, era missão; resumiu-se numa imagem famosa: "Sou um tupi tangendo um alaúde".
A imagem é contraditória, surrealista até. Só que a contradição não é apresentada como tal, como alguma coisa insuportavelmente viva, pedindo para ser resolvida. É a própria solução, é o ponto de chegada, ato afirmativo e desafiador.
Curiosamente, sua forma é a mesma de outra frase, esta escrita com finalidade crítica e sarcástica por Oswald de Andrade contra Ruy Barbosa: "Uma cartola na Senegâmbia". Entre a inadequação ridícula apontada nesta última caracterização e o "heroísmo lírico", o escândalo narcisista, se podemos dizer assim, da primeira, não há a rigor muita diferença. Não maior do que a que existe entre a dizer "eu sou assim" e dizer "ele é assim". Ainda que se diga o mesmo nos dois casos, franqueou-se o abismo que vai da auto-afirmação à maledicência. É como se estivéssemos diante de um espelho que fosse ao mesmo tempo transparente.
Claro que dizer "tupi tangendo um alaúde" é ser nostálgico, é evocar duas coisas e um verbo que pertencem ao passado, enquanto "uma cartola na Senegâmbia" deriva seu efeito cômico da radicalização da distância espacial. O tempo é sempre mais melancólico do que o espaço. Mas isso não altera a argumentação acima: pois, de certa forma, o tempo é sempre da ordem do "eu", enquanto o espaço seria sempre da ordem do "ele", da terceira pessoa.
Se faz sentido falar num "espelho transparente" a respeito de uma obra como a de Mário de Andrade, que se mostra múltipla no esforço de auto-afirmação, sofisticadamente européia no nacionalismo, rapsódica e "sem-caráter" como seu herói Macunaíma, modernisticamente triunfal e modernamente insatisfeita consigo mesma, aquele verso citado no início, "eu sou trezentos..." surge como um desafio no duplo sentido do termo. O de auto-exaltação e o de angústia, de achado e de procura.
Falar que a obra de Mário de Andrade é "inesgotável", como eu disse acima, talvez não seja assim uma frase tão banal. É inesgotável não só por ser amplíssima, mas porque tampouco se esgotou a si mesma; não resolveu tudo o que queria resolver, pois tendia a apresentar, creio, já como solução o que era apenas a constelação de circunstâncias, dados contraditórios ou díspares, que presidiam a seu funcionamento. Mais uma vez, a obra de Mário de Andrade é um pouco como o Brasil.
É a esse campo inesgotável que Telê Ancona Lopez vem dedicando toda sua carreira intelectual. "Mariodeandradiando" reúne sete estudos sobre a obra de Mário de Andrade, escritos em épocas diversas.
Em "A Estréia Poética de Mário de Andrade", de 1971, a pesquisadora se volta para "Há uma Gota de Sangue em Cada Poema", identificando, com rara acuidade, as fontes européias de inspiração para o conjunto de poemas pacifistas publicado em 1917. Os poetas unanimistas franceses (Jules Romains), o simbolismo belga de Verhaeren e Francis Jammes, o português Antonio Nobre são, como demonstra a autora, responsáveis por muitas ressonâncias nos versos de Mário de Andrade àquela época.
"Arlequim e Modernidade", de 1976/79, estuda "Paulicéia Desvairada", poemas de 1922, à luz das influências da vanguarda italiana sobre Mário de Andrade, em especial a do poeta e pintor Ardengo Soffici, cujo livro "Arlecchino"'-e sabe-se do valor do adjetivo "arlequinal" na obra de Mário de Andrade- foi publicado em 1918.
Em "Rapsódia e Resistência", a autora se volta mais uma vez para "Macunaíma", de que já deu, nos anos 70, uma exemplar edição crítica. O Mário de Andrade contista, ou melhor, os "três Mários de Andrade contistas", como indica a autora, são recenseados no ensaio seguinte.
Outra influência, não mais européia, mas das próprias viagens que Mário de Andrade fez pelo Brasil -e os vários "Brasis" que ele conheceu- é identificada, novamente com precisão, no diálogo entre as anotações de "O Turista Aprendiz" e outras obras do autor, que Telê Ancona Lopez rastreia no penúltimo ensaio do livro.
"Mário de Andrade e a Dona Ausente" procura, nas anotações e originais do autor, traçar as linhas daquilo que se constituiu num "grande ensaio interrompido" do Mário de Andrade folclorista, sobre o tema da ausência da mulher amada no imaginário luso-brasileiro.
Telê Ancona Lopez novamente retira dos arquivos do autor, de cuja organização é responsável no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, indicações preciosas no esclarecimento de uma obra gigantesca, à qual se tem entregue com paixão e seriedade.

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