São Paulo, domingo, 18 de agosto de 1996
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Histórias febris da medicina

JOSÉ MARCOS MACEDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em desabono de semelhante tarefa, o autor já fizera notar certa vez, não sem desalento, que a citação não figura no elenco dos gêneros literários, muito embora ela conste tanto da síntese de um pensamento quanto da expressão de uma época.
Como testemunho, e sob o crivo de um critério de escolha pessoal e cronológico, os trechos selecionados são compostos de textos "que marcaram a evolução da medicina e da luta do ser humano contra a doença".
Muita tinta já correu sobre o vínculo entre enfermidade e poder criativo. Sem explorar esse filão, por si só esgotado, Scliar a um tempo reverte o pouco-caso a que está proscrita a compilação temática de textos esparsos e, de quebra, quer se trate de obras literárias ou médicas, acena para o ponto de intersecção em que afluem a angústia da doença e sua equação linguística: a palavra escrita.
Trata-se de um verdadeiro processo de tradução, como lembra o autor: das vozes inarticuladas do corpo humano e das queixas do paciente constrói-se um discurso suplementar, do qual a anamnese, o relato do caso, erige-se em consumado gênero literário.
Ora, verdade é que nem só a narrativa de cátedra constitui registro da literatura. Pedro Nava, ele próprio médico e em cuja obra a medicina entrelaça-se à perfeição com a escrita, elenca um rol de frases pitorescas nas quais os enfermos lhe vertiam as agonias e aflições, sem contudo descurarem do fulgor das imagens:
"Tenho o tornozelo cheio de vidro moído. Sofro de fisgadas ardidas. Tenho um rebolado no joelho. Meu Deus, doutor! tenho sensação de formigamento que vai da papada à ponta do pé e ao mesmo tempo parece que estão enchendo minha perna e minhas cadeiras que nem pneumático de automóvel. Tenho uma canga no pescoço e a cabeça feito mingau. Uma correria dentro de mim. Meu corpo fica feito bacia de saboada quando as bolhas tão rebentando -aí ele arde e chia, bate todo por dentro, e com o perdão da má palavra, treme até na vagina. Uma corrente de ar nos ossos da perna afora". E assim por diante.
Decifrar tais enigmas e propor o diagnóstico talvez não seja a tarefa mais árdua. Pior será aviar receitas e incuti-las corretamente na cabeça dos pacientes, pois que os há capazes de esfregar xarope nas zonas inflamadas, comer pomadas e introduzir pílulas nas cavidades.
O mesmo Nava lembra-se de um caso narrado na aula de farmacologia: um meninão já quase homem, ao ensaboar-se no banho, deu-se conta pela primeira vez da abertura anal e, aterrado, "pôs a boca no mundo pela mãe, dizendo que lhe dera um buraco embaixo". Foi o quanto bastou para lhe darem a alcunha de "O Descobridor". E, sério, concluía o mestre: "Para receitar um remédio às colheradas é preciso saber se o doente tem consciência de ter boca; um supositório, se temos certeza de que o paciente já teve seu instante de descobridor e sabe onde introduzir o torpedo aconselhado".
Melhor pacientes do que médicos inábeis, pois estes também os há, e inúmeros, que erigem com termos em latim um "muro intransponível e impenetrável" que os isola dos pacientes, como diz Thomas Bernhard, ao destilar sua atrabile ("o humor negro que não ferve") contra os clínicos. Para estes -já que o livro é de citações- vale o mote a que Scliar não alude, embora nada tenha perdido de seu vigor: "Médico, cura-te a ti mesmo" (Lucas, 4, 23).

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