São Paulo, domingo, 18 de agosto de 1996
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Um antropólogo às avessas

HÉLIO BICUDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ao receber o convite do jornalista responsável pela edição do caderno Mais!, antes mesmo de vir a lume, na edição de domingo último (11/8/96), o artigo sob a epígrafe "O corifeu da homofobia" (sic), para resposta, devo supor que não se endossava a maneira, não só descortês, mas sobretudo ofensiva, na linha dos impropérios contra mim destilados pelo seu autor, um certo mestre em antropologia.
Reafirmo o que disse em artigo anterior, que é difícil discutir com pessoas que têm idéias preconcebidas, com interesses pessoais que preponderam sobre a boa razão. O preconceito e a paixão fazem baixar, como se constata da leitura da manifestação do mestre em antropologia, o nível da discussão para, com apodos pessoais, impróprios àqueles que se dedicam ao desenvolvimento da cultura, assim mascarar a fragilidade de seus argumentos, com apelos àqueles que nem sequer os têm.
Vai daí que me dispus a escrever o que segue, mais em homenagem a este jornal que tem abrigado as opiniões que, sob variada matéria, tenho externado no curso de minha vida pública.
E o faço, não para responder ao conteúdo, tão vazio de substância que não mereceria qualquer resposta e muito menos às considerações pessoais de quem, sem passado, ignora o passado de quem o tem, consequente à sua atuação como homem público, com posições claras, sem apelos à demagogia ou ao eleitoralismo, consciente de que busca, com sua luta, a construção do bem comum.
A sociedade solidária
Deixemos, entretanto, de lado o que não é essencial à discussão. Aliás, para não repetir o que fez o mestre em antropologia, que não percebeu que o problema de que venho tratando encontra o seu centro não no casamento de pessoas do mesmo sexo, mas na questão antropológica da transmissão da vida e na violação do processo vital mediante a esterilização e o aborto.
A chamada união civil entra na equação de maneira, diríamos, marginal, desde que a legalização de uma tal união não leva, senão, à preservação de valores patrimoniais.
Como tantas vezes já tive a oportunidade de afirmar, não tenho e não poderia ter qualquer restrição a comportamentos, neste ou naquele sentido, ou a pessoas que fizeram determinadas opções de vida, desde que não se ultrapasse os limites da lei. E, sobretudo, respeito, embora não me possa ser negado o direito de contestar, soluções adotadas até a nível legal, mas que a meu ver não correspondem às necessidades reclamadas para a construção de uma sociedade democrática e solidária.
Nesse sentido, convém ainda repetir que, no desempenho daquilo que entendo como cidadania, desde que vivemos numa república laica, não costumo misturar questões de foro íntimo, como minhas convicções de cristão, que não podem ser submetidas a qualquer tipo de patrulhamento, com problemas considerados de interesse público.
Não vejo, assim, que o aumento das pautas de inserção dos homossexuais na comunidade possa depender de um "papel passado em cartório". Muito pelo contrário, a aceitação de situações existentes -não sei onde foi se buscar que os homossexuais somam no Brasil cerca de 15 milhões de pessoas- depende, isto sim, da conscientização por intermédio de processo educacional, com a consideração de que o homossexual é uma pessoa humana e como tal tem que ser tratado.
Caminhos da lei civil
É, aliás, o que se lê no Catecismo da Igreja Católica, quando assinala que homens e mulheres que apresentam tendências homossexuais preponderantes devem ser acolhidos com respeito, com compaixão e delicadeza, sem quaisquer discriminações (op. cit., nºs. 2357 "usque" 2359).
Violam-se os direitos humanos, isso sim, quando no afã de fazer vencedora uma proposição sob todos os pontos de vista extemporânea e inútil permite-se a submissão de pessoas a vexames, como aconteceu, ainda recentemente, na oportunidade em que se ouviram, em sessão especial de Comissão Parlamentar, dois homossexuais, submetendo-os a afrontas inadmissíveis, quando -já é cansativo insistir- tudo aquilo que o projeto da chamada união civil pretende pode ser alcançado pelos caminhos da lei civil, inserta no Código Civil, ou constante de normas extravagantes, que são aquelas que não fazem parte do corpo principal codificado.
Os ataques à Igreja, na pessoa de seu pastor, o papa João Paulo 2º, são apenas mais um extravasamento de aguda e conhecida sensibilidade reveladora de desequilíbrio e que, autoritária, não admite que se pense senão pelos padrões que pretende impor.
Diante, pois, da pobreza de argumentos -na verdade não os vi em nenhum instante-, desde que o mestre antropólogo limita-se a ataques pessoais, convém, em remate, salientar, e aqui tomo as palavras do eminente homem público que foi Prado Kelly, ao declarar que diante do atual desenvolvimento tecnológico estamos a ser convocados para buscar conceitos e regras que mantenham a supremacia do espírito sobre as contingências derivadas desse surto material que avassala o mundo. E mais do que isso: "Há que opor as forças morais à desarticulação cética; o idealismo ao pragmatismo; o sentimento à utilidade; a criação à desordem".
Como se vê, o antropólogo deixou de lado, no trato da matéria, as lições da própria antropologia, como ciência humana.

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