São Paulo, domingo, 18 de agosto de 1996
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Zé Celso é necessário como nunca

JOSÉ MIGUEL WISNIK
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há poucos anos vi em São Paulo as "Bacantes" de Eurípedes na encenação de Tadashi Suzuki. Era uma versão enxuta (uma hora de duração no máximo), com aquele bom acabamento ostensivo que costumamos ver num certo padrão internacional de teatro e moda, ao mesmo tempo que limpa e vazia como aquelas lojas de roupa americano-japonesas.
Embora "Bacantes" seja a tragédia da aparição renegada e por isso mesmo terrivelmente vitoriosa de Dionísio, o deus da força informe e sem medida, a peça soava como uma litania apolínea de um Dionísio ausente. Como se a peça dissesse esta lição: a força dionisíaca, que gerou o teatro, é destrutiva e irrepresentável, e tem que ser vista à toda distância.
Sob quase todos os aspectos as "Bacantes" de Zé Celso é o oposto. Com suas cinco horas de duração, cheia de momentos do mais intenso brilho e de fragilidades cruamente expostas (principalmente uma certa saturação de intenções alegóricas, inteligentíssimas, que carregam no "over", e uma dificuldade de fazer inteligíveis os longos coros narrativos cantados, o que é um problema de resolução complexa), o partido inteiro é o de participar do eterno estraçalhamento e renascimento de Dionísio, encurtando a distância que nos separa do mito e do rito.
Aparentemente, poder-se-ia ver nas duas versões limitações equivalentes e opostas, correspondentes à própria impossibilidade de representar Dionísio (impossibilidade que no entanto e paradoxalmente, insisto, é a própria matriz do teatro). Mas não há equivalência possível: pelas questões lancinantes que abre na sua oscilação inacreditavelmente forte entre a beleza e o abismo perigoso da própria ruína, pela capacidade de fazer cintilar o deus na ganga bruta e pelos impasses que traz à tona -e que são nossos- eu escolho sem hesitar as "Bacantes" do Oficina.
O Dionísio aqui, diferente do que se costuma pensar, não é somente o deus dos poderes embriagantes do vegetal e da música, da busca do gozo por meio do transe orgiástico, de eflúvios báquicos vistos através de um véu de beleza domada. O que seria mais propriamente órfico. Dionísio é também o deus do "sparagmós", o dilaceramento por meio do qual a identidade cristalizada perde a forma para renascer da violência sagrada. Essa questão, que está no coração da tragédia de Eurípedes, está também no coração das "Bacantes" do Oficina, que consegue ser ao mesmo tempo, na sua atualidade ostensiva, extrema e surpreendentemente fiel aos problemas colocados ponto a ponto no texto original.
Não me surpreende que a peça provoque as reações opostas dos que se entusiasmam literalmente (o público popular da arena grega de Ribeirão Preto, o público carioca reconhecendo-se alegremente na vocação orgiástica que é a da sua cidade, no Festival Rio-Cena, o público da maravilhosa estréia em São Paulo) e dos que desprezam odiando, com a mesma intensidade, aquilo que lhes parece ser uma mistura descosturada de atentados pífios, seja ao bom gosto, à inteligência, ao pudor, ou à pessoa física do espectador...
A meu ver, essa polaridade (toda distância ou nenhuma) não é mero sintoma das diferenças do público, ou dos altos e dos baixos de um espetáculo luxuosa e luxuriosamente generoso e criador, mas um sinal do enfrentamento radical dessa peça com os impasses desencadeados pela sua questão central: a irrupção do dionisismo na ordem pública.
Na Grécia o dionisismo foi a religião de grupos à margens da "pólis", camponeses, escravos e mulheres. Na peça tardia de Eurípedes, em que o reino de Tebas, por intermédio do governante Penteu, paga o preço de ter negado legitimidade à força do deus, a margem subverte o centro da "pólis" numa carnificina incestuosa, cujo meio de transporte é o transe das mulheres (que circulam do centro à margem e da margem ao centro). Quando a peça foi escrita, o dionisismo originário já era uma realidade distante, que aparece nela, no entanto, com a força de uma atualidade extrema e contundente.
Assim, o que é mais fascinante em tudo é que nas próprias "Bacantes" de Eurípedes o dionisismo já é visto, como se desde sempre, à toda distância e nenhuma (esse enigma atravessa a história das interpretações do texto, incluindo a oscilação nietzschiana na "Origem da Tragédia"). A interpretação de Zé Celso acaba deixando isso evidente.
Afinal, os temas da peça também nos são crucialmente familiares, de uma atualidade emergente e urgente. Não só no país do Orfeu do carnaval e da orgia popular, mas no mundo onde a droga se dissemina nas margens e no centro da "pólis" cósmica e caótica, onde a sexualidade se estilhaça num arco polimorfo, e onde a violência não tem como ser canalizada simbolicamente, a questão do dionisismo, para além do transe da orgia marginal, acaba sendo a mira e o alvo da própria ordem política: o destino da violência na vida social presente.
Estraçalhando a partir de si mesmo a concentração exclusivista da forma e dos poderes, a imagem dada como acabada, o rito dionisíaco feito tragédia- comédia-orgia quer cavar na ressurreição amorosa a possibilidade de dar um destino redentor à violência social, com o auxílio daquela capacidade de transformar a dor em alegria que há na vocação carnavalesca do Brasil popular e da música popular brasileira (engraçadamente citada a cada passo da tradução). A participação de Caetano Veloso no espetáculo do Rio, como Orfeu dilacerado e instantaneamente renascido, tabu e totem, testemunha a identidade profunda e a promessa de felicidade na dor, que é também a crença partilhada na possibilidade de transformação que o Brasil contém em si.
Cômica e tragicamente, uma das teses implícitas ou explícitas no espetáculo é a de que a camada dominante brasileira, campeã olímpica da concentração de renda, da concentração de terra e dos meios de informação, ganharia em se deixar estraçalhar pelos dons da divindade crônica, não-olímpica, gozosa, do Dionísio popular que busca sua expressão no teatro, na música ou na força telúrica dos Canudos sem terra.
Os objetivistas de todo tipo verão ingenuidade política e irracionalismo completo nessa estratégia estética de politização (paradoxal) do carnaval. Mas não é certamente de ingenuidade que se trata: pode-se dizer que é de grandeza artística convertida em inocência anárquica. "Bacantes" não está aí para ser politicamente razoável (à medida que a política é o teatro da "pólis"), mas para tocar na ferida coletiva e na fonte misteriosa do gozo, que geralmente estão por baixo desse teatro. Para isso, mistura curiosamente catarse e distância brechtiana, une e divide a platéia em momentos alternados e simultâneos, e não barateia o custo existencial e social do gozo, para que a massacração da primavera das uvas, no fim, não se confunda com os massacres calados de cada dia.
Ao mesmo tempo, afastar-se da letra literal do texto de Eurípedes para atualizá-lo é, na verdade, ser fiel à sua força de origem. É sabido, e está claro no texto de Eurípedes, que a presença do deus depende do dom dos mortais, isto é, dos vivos. O deus vive dos vivos, e o dom dos vivos é a vida presente: só isto.
A enorme força variável do espetáculo depende em muito da conjunção participante de um texto já arquetípico, da sua tradução, dos atores (Marcelo Drummond cresceu sob meus olhos desde Clara das "Boas" e faz um Dionísio esplêndido, junto com Fransérgio Araújo, belo Penteu travestido como num momento de Pasolini, e elenco que não tenho como comentar aqui) e também depende da presença viva do público e da hora.
O espetáculo, no qual Zé Celso jogou sua vida, depende também, por isso tudo, de uma cultura teatral de produção e de público que existe e não existe entre nós. Em 60 uma companhia vivia de bilheteria, e hoje, no tempo da cultura do patrocínio, isto não é mais possível, por motivos que ninguém ainda historiou direito, até onde eu saiba. O projeto da grande ópera de carnaval brasileira, da qual "Bacantes" é o paradigma, precisa de patrocínio, para que possa ser paga e ainda mais cobrada do que já é. Por outro lado, quando o público vai a uma festa, ao sambódromo, a um show de rock, a um jogo de futebol, não regula tempo e nem se preocupa com o estofo da poltrona. E "Bacantes" é ao mesmo tempo carnaval, show, jogo e festa da inteligência. Eu que também assisti "O Rei da Vela", "Roda Viva", "Galileu Galilei" e "Na Selva das Cidades", acho que Zé Celso, encarnando em Tirésias, o jogo eterno da infância e da velhice, está mais atual e necessário do que nunca.

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