São Paulo, domingo, 18 de agosto de 1996
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A conquista da Amazônia

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

"Thy Will Be Done", seja feita a tua vontade, conta a saga do poder de Nelson Rockefeller sobre a América Latina, por quatro décadas.
O livro levou 18 anos para ser escrito. Começou com uma viagem dos jornalistas Gerard Colby e Charlotte Dennett ao Brasil para averiguar as denúncias do envolvimento de corporações, missionários e da CIA na morte de índios e acabou em 960 páginas que acompanham, como trama central, o fascínio de Rockefeller pela Amazônia.
Lançado no ano passado nos Estados Unidos pela editora Harper Collins, e com uma edição recém-publicada em "paperback", o livro foi comprado pela Editora Record para lançamento no Brasil no ano que vem.
Traz um Nelson Rockefeller (1908-1979) fascinado pela Amazônia como uma nova versão do Oeste selvagem, que foi a origem da fortuna da família Rockefeller, com o avô, John Rockefeller. Uma fortuna de empresas como Chase Manhattan Bank, Standard Oil of New Jersey ou Esso, Eastern Airlines e o Rockefeller Center, em Nova York.
'O Capital' para executivos
A aventura político-empresarial de Nelson Rockefeller na Amazônia começou quando ainda não havia completado 30 anos e fez uma viagem de três meses pela América do Sul, em 1937, com passagens pitorescas pelo rio Orinoco e pelas ruínas incaicas.
O objetivo era inspecionar as operações da Standard Oil, que vinham de ser nacionalizadas na Bolívia e corriam riscos no México. Mas o resultado, sobre o jovem Rockefeller, foi avassalador, um "turning point" ou ponto de mudança na sua vida, segundo biógrafos.
Escreveu para casa falando longamente sobre índios da Amazônia, passou a colecionar arte latino-americana e chegou a procurar convencer a família para uma atuação social da Standard Oil. (Na Venezuela, como nota o livro com ironia, ele próprio leu e depois insistiu para que os executivos da subsidiária lessem "O Capital", de Karl Marx.)
A informação de que Nelson Rockefeller pensava muito diferente dos demais membros da família acabou por aproximá-lo do presidente Franklin D. Roosevelt, democrata.
Em 1940, diante da crescente influência nazista na América Latina, Rockefeller apresentou a Roosevelt um estudo defendendo medidas para "os Estados Unidos manterem sua segurança e sua posição político-econômica no hemisfério". Pouco depois, era nomeado pelo presidente o Coordenador para Assuntos Interamericanos, seu primeiro cargo político e o início de sua atuação na América Latina.
A primeira tarefa foi na Amazônia. A Casa Branca estava preocupada com a recente tomada das plantações de borracha da Malásia pelos japoneses, e a tarefa era garantir a produção e a saída da borracha brasileira.
Para tanto, Rockefeller pediu um relatório sobre condições dos trabalhadores a J.C. King, um executivo de empresa (leia texto à pág. 5-6). "Quando fez o levantamento", diz em entrevista um dos autores do livro, Gerard Colby, "King expandiu o tema para analisar os recursos naturais".
A partir daí, Rockefeller idealizou e apresentou a Roosevelt o seu grande projeto de desenvolvimento da Amazônia, afinal descartado. "Os planos ambiciosos de Nelson Rockefeller tiveram que ser contidos, pelo menos durante a guerra. Mas ele nunca os esqueceu."
Depois da guerra, formou a International Basic Economy Corporation (Ibec), uma empresa de participação em empreendimentos no mundo inteiro, e a American International Association for Economic and Social Development (AIA), de cunho filantrópico. Foi quando começou a fazer os primeiros investimentos sérios no Brasil, avaliando depósitos de fosfato e outros recursos para incrementar os seus projetos agroindustriais.
O paralelo entre a conquista da Amazônia e a conquista do velho Oeste norte-americano acompanhou toda a ação, sendo expressa por Earl Parker Jones, assessor de Rockefeller: "Eu me vejo a cada esquina confrontado pelo argumento romântico de que a conquista da área virgem da América do Sul faria, para o hemisfério ocidental, o que o Oeste fez para os EUA".
Segundo a co-autora de "Thy Will Be Done", Charlotte Dennett, foram usadas até as mesmas técnicas de colonização -uma referência à relação com os missionários religiosos norte-americanos da Sociedade Internacional de Linguística (SIL), que teriam atuado como pacificadores e informantes na Amazônia. É um dos aspectos mais polêmicos do livro (leia entrevista à pág. 5-5).
Informações sigilosas
Romântico ou não, Nelson Rockefeller não perdeu de vista os aspectos mais pragmáticos, por assim dizer, da ação no Brasil. Em primeiro lugar, na relação com Adolf Berle, descrito como seu "professor em política latino-americana" desde os primeiros contatos.
Adolf Berle foi nomeado embaixador no Brasil no fim do Estado Novo, segundo o livro, por influência de Rockefeller, tendo pressionado pela derrubada de Getúlio Vargas. Para o próprio ditador, foi quem instigou o golpe.
Posteriormente, até o movimento militar de 1964, Berle foi ouvido sobre ou tomou parte em diversas ações do governo norte-americano no Brasil e na América Latina.
Detalhadas no livro, as informações têm como base os diários do próprio Berle, aos quais os autores conseguiram acesso. Outras informações referentes ao envolvimento político de Rockefeller foram obtidas com o acesso aos arquivos da família. Os documentos passaram a ser liberados no fim dos anos 80 e continuam sendo.
Quanto aos documentos oficiais, foram abertos aqueles referentes à ação do Coordenador de Assuntos Interamericanos, nos anos 40.
"A maior parte dos papéis sobre a sua ação como assistente especial para estratégia de Guerra Fria do presidente Eisenhower, nos anos 50, ainda estão sigilosos", diz Gerard Colby. Na função, ele presidiu o Grupo Especial, que inspecionava as operações encobertas da CIA.
O certo, sublinha Colby, é que "Nelson Rockefeller surgia mais forte", em negócios no Brasil, "depois de cada vez que Vargas era deposto, primeiro em 1945, depois com o suicídio".
Em 1956, depois do suicídio de Vargas, ele passa a conversar mais seriamente com Walter Moreira Salles sobre investimentos no Brasil. Banqueiro, Salles foi embaixador nos EUA, vindo daí o conhecimento mútuo.
O primeiro grande investimento conjunto, logo em seguida, foi a fazenda Bodoquena, no Mato Grosso, nos limites da Amazônia, com mais de 1 milhão de acres.
No ano seguinte foi a vez de estruturar, também através da Ibec, o braço empresarial de Nelson Rockefeller, o Crescinco, que em 1959 chegou a ser o maior fundo mútuo do país, com participação em mais de cem empresas. Mas ele já estava então com os olhos inteiramente voltados não mais para a Amazônia ou a América Latina, mas para os próprios EUA.
Em 1958 foi eleito governador de Nova York, então o mais rico e populoso Estado norte-americano, e iniciou a caminhada para uma almejada candidatura a presidente. Candidatura que os republicanos não lhe permitiram, na convenção de 1964, quando o preferido foi o extremista Barry Goldwater, e Nelson Rockefeller recebeu uma vaia histórica.
Por outro lado, meses antes, também em 1964, morreu seu filho favorito, Michael. E o escritor Norman Mailer escreveu que Rockefeller, em campanha, ainda "tinha uma face forte, decente, mas os seus olhos haviam sido batidos -eles tinham o brilho distante e lunar dos pequenos olhos tristes que você vê num chimpanzé ou num gorila enjaulado".
Jango, o inaceitável
Ainda assim, não faltaram forças para escrever ao general Humberto de Alencar Castelo Branco: "Permita-me congratular sua excelência... O Brasil estabeleceu um exemplo excepcional para o mundo inteiro e demonstrou a sua determinação de rejeitar o comunismo... Aceite meus melhores votos de sucesso nos seus esforços patrióticos".
Pouco depois, o irmão David Rockefeller, em conferência sobre a América Latina na Escola Militar de West Point, diria que "estava decidido desde muito cedo que João Goulart não era aceitável para os Estados Unidos".
Nelson Rockefeller buscaria ainda outras vezes a candidatura presidencial, assim como ampliaria a influência na política externa dos EUA, com a ascensão de seu amigo e assessor Henry Kissinger. Chegou mesmo a aceitar ser o vice-presidente (1974-1977) de Gerald Ford. Mas os olhos já estavam batidos, como sublinha "Thy Will Be Done".
Na América Latina, a sua última grande intervenção foi o Relatório Rockefeller para as Américas, preparado por solicitação do presidente Richard Nixon, e que exigiu uma longa viagem pela região, com atenção especial para o regime militar brasileiro.
No relatório, Rockefeller defendeu os "novos militares", adaptando a sua política de desenvolvimento com liberdade, no dizer dos autores de "Thy Will Be Done", para desenvolvimento sem liberdade, o que manchou o seu histórico de republicano liberal.
Também naquele relatório, defendeu oficialmente um ideal que há muito dividia com o irmão David, a Zona de Livre Comércio do Hemisfério Ocidental. A mesma que foi retomada dois anos atrás por Bill Clinton, sob o título de Associação de Livre Comércio das Américas.
Foi um último legado, marcado já pela influência crescente do irmão.

Onde encomendar:
"Thy Will Be Done" (Ed. Harper Collins, 960 págs.) pode ser encomendado, em São Paulo, à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4033) e, no Rio de Janeiro, à Livraria Marcabru (r. Marquês de São Vicente, 124, tel 021/294-6396).

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