São Paulo, domingo, 18 de agosto de 1996
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Um agente da CIA passa silenciosamente no Rio

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Entre várias personagens obscuras à volta de Nelson Rockefeller, em quatro décadas de Brasil, "Thy Will Be Done" apresenta o "velho amigo" J.C. King, John Caldwel King. Ele surge no início dos anos 40, durante a Segunda Guerra Mundial, quando do esforço norte-americano de retirar o domínio das linhas aéreas latino-americanas de mãos alemãs -no caso do Brasil, com a substituição pela Pan American Airways, a Panair.
Era então vice-presidente da Johnson & Johnson, encarregado das operações no Brasil e na Argentina. A empresa, diz o livro, participou do esforço, ao lado de Nelson e de seu irmão Laurence Rockefeller.
Mas é depois, quando chamado por Nelson Rockefeller para fazer um relatório sobre a região amazônica, que J.C. King inicia aquilo que o livro chama de "marcha até os pináculos do poder na CIA", a agência de inteligência norte-americana.
Apesar de formado na Escola Militar de West Point, King seria até então apenas um rigoroso executivo industrial, responsável pela fabricação das primeiras camisinhas brasileiras. Conhecia a Amazônia por interesses farmacêuticos.
Para o relatório, embarcou em Belém num barco, que descreveu depois em carta: "Eu entrevistei a tripulação. De 35, 24 admitiram ter sífilis, 22 têm ou tinham gonorréia. Só quatro disseram não ter qualquer das duas... Todo menino servindo de garçom às mesas dos passageiros era sifilítico. A tripulação tinha 522 crianças; 20 mortas".
No caminho passou pelo vale do Amazonas, pela ainda mais trágica ferrovia Madeira-Mamoré, até alcançar o Acre. O relatório a Rockefeller, carregado de estatísticas de miséria e morte, ganhou ares épicos. Assim, "a vida do seringueiro é a vida da fronteira distante; sem qualquer restrição legal ou moral, uma vida de luta e violência -uma réplica século 20 do nosso velho Oeste selvagem".
No final: "A bacia do Amazonas, de terra ainda não desenvolvida e quase despovoada, oferece o nosso maior desafio e esperança. Capaz de sustentar cem milhões de pessoas, uma vasta e nova saída industrial para a América, uma reserva gigante de materiais brutos para os trópicos... Nós, os Estados Unidos, estamos diante de uma das grandes oportunidades da história...".
King e Nelson Rockefeller tiveram seus grandes sonhos fulminados pela resistência do ditador Getúlio Vargas e, segundo outra visão, pela prioridade norte-americana para o Plano Marshall.
King entrou então para o serviço militar ativo, com a interferência de Rockefeller junto ao secretário norte-americano da Guerra.
Termina a guerra, e o já então adido militar, diz o livro, passa a monitorar a entrada de antigos oficiais nazistas em países latino-americanos como Argentina, Bolívia e Chile, onde muitos atuam como contatos da CIA.
O êxito da operação torna J.C. King coronel e, em meados dos anos 50, no equivalente de um general, como Chefe de Serviços Clandestinos no Hemisfério Ocidental da CIA.
Na função, coordena operações anticastristas e sugere, já em 1959, ao diretor da agência, Allen Dulles: "Rigorosa consideração deve ser dada à eliminação de Fidel Castro. Nenhum daqueles próximos a Fidel, como seu irmão Raul e seu companheiro Che Guevara, têm o mesmo apelo às massas". Chega a oferecer US$ 50 mil ao mafioso John Roselli pelo assassinato de Castro.
Na função, diz o livro, King também supervisiona a distribuição de armas da CIA para serem usadas no assassinato do ditador Rafael Trujillo, da República Dominicana, em 1961.
Aproximando-se o golpe militar no Brasil, era King quem dirigia de Washington as operações da CIA no Recife do governador Miguel Arraes, onde teria infiltrado as Ligas Camponesas. No momento exato do golpe, J.C. King estava no Brasil. "King esteve muito silenciosamente no Rio durante a recente revolução de abril lá", anotou Adolf Berle, que havia sido embaixador no Brasil e foi a maior influência sobre Rockefeller em questões da América Latina.
Foi um dos últimos serviços de King para a agência. Ele se aposentou da CIA no mesmo ano de 1964. Ainda assim, não inteiramente.
Dois anos depois, criou a Amazon Natural Drug Company (Andco), que estudou, entre outras drogas naturais, contraceptivos usados pelos próprios índios, como parte da crescente atenção do governo norte-americano e dos Rockefeller ao controle populacional no Terceiro Mundo.
Mais importante, teria coletado e enviado material para armas químicas aos Estados Unidos.
A empresa promovia constantes expedições no Amazonas, e o próprio J.C. King tomava parte, confortavelmente, em seu grande barco-residência. Nas expedições, conferenciava com fontes de informação, entre elas um bispo católico de uma pequena cidade do Amazonas.
Nos anos 70, porém, uma nova direção da CIA pressionou contra as atividades da Andco, e King acabou por vender a empresa.
Em 1975, a pressão aumentou, e King chegou a ser interrogado sobre as operações de assassinato contra Fidel Castro e Rafael Trujillo. A comissão de investigação era dirigida por ninguém menos do que o "velho amigo" Nelson Rockefeller, então vice-presidente dos EUA.
Deu em nada, e J.C. King morreu em 1977, depois de anos sofrendo de mal de Parkinson. Com forte suspeita, "Thy Will Be Done" registra que a morte ocorreu uma semana antes de um depoimento dele, na comissão parlamentar que investigava a morte de John Kennedy.
(NS)

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