São Paulo, domingo, 18 de agosto de 1996
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A onipresença do horror

JAVIER MARÍAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na hora de julgar o homem contemporâneo -sempre um julgamento tão severo, sobretudo se se trata do ocidental, e se ele é julgado por autoflagelantes e autocomplacentes ocidentais que aliviam sua consciência particular arremetendo contra o coletivo-, esquece-se quase que sistematicamente a brutal mudança a que se viu submetida, por exemplo, uma pessoa que hoje tem 80 anos.
No decorrer de sua vida assistiu a mais modificações essenciais do que as que a humanidade experimentou em centenas de anos. Para um cidadão do século 5 e outro do 19, o conceito de tempo e de espaço eram quase idênticos: os deslocamentos se faziam, em ambas as épocas, somente por terra e por mar e levavam aproximadamente o mesmo tempo. A comunicação quase não tinha variado e continuava dependendo mais de mensageiros à Miguel Strogoff que de algum outro procedimento. Não se podia escutar a voz à distância e menos ainda ver imagens do que acontecia em outro lugar ao mesmo tempo em que sucediam, nem sequer depois; elas não existiam em movimento. Isto, para mencionar somente alguns elementos fundamentais para a concepção do mundo e dos semelhantes.
Esta pessoa de 80 anos teve que alterar no decorrer de sua vida sua percepção da realidade em maior medida que incontáveis gerações anteriores ao longo dos séculos, e o certo é que já há bastante mérito em que o homem contemporâneo não esteja ainda mais desajuizado do que está e ainda guarde algo da memória, que não tenha apagado inteiramente um passado recente que, do ponto de vista dos efeitos psicológicos tem que lhe parecer tão remoto quanto -insisto no exemplo- o século 5 a um indivíduo do 19.
Mas há um fator concreto do qual mesmo assim se costuma passar por cima e que é ainda mais grave e decisivo. Do meu ponto de vista, a maior mudança entre todas é a acontecida na relação dos indivíduos com o horror. Todos sabemos ou intuímos que em todas as partes e em todas as épocas se cometeram atrocidades: houve guerras, massacres, assassinatos, perseguições, crueldade e furor até a náusea. Há somente 60 anos tivemos de sobra tudo isto aqui mesmo, e há 50 se descobria o maior extermínio de um segmento da população européia de que se tem notícia, depois de uma devastadora guerra no continente inteiro.
A cada cidade, a cada país coube uma boa ração de horror ao longo de sua história. Mas esta é a diferença básica: a cada cidade ou a cada país lhe cabia nada além do que a sua porção, e por mais sanguinárias que fossem, não deixavam de ser vividas como exceção. Por prolongados que fossem os enfrentamentos, chegavam a seu fim mais cedo ou mais tarde, ao menos em sua expressão mais virulenta e no território em que se tinham engalfinhado. No fundo a quantidade de horror que cabia a cada indivíduo contemplar ao longo de sua existência era -com as devidas exceções e más sortes- limitada e nunca constante.
A períodos cruéis se sucediam temporadas cheias de injustiças e de crimes -estes nunca faltaram-, mas de relativo sossego, para não dizer de paz. As pessoas tomavam conhecimento do que acontecia no lugar em que moravam e de pouco mais. Às vezes até mesmo ignoravam o acontecido em um bairro algo distante se a cidade era grande como Paris ou Londres. Sabe-se de um considerável massacre havido no século 17 na capital da França do qual muitos vizinhos nem tiveram notícia.
Ser testemunha do espanto, vê-lo com os próprios olhos era, afinal de contas, algo extraordinário, e é por isso que cada vez que ele se apresentava causava tanta impressão. É por isso que se compuseram poemas e novelas inteiras sobre acontecimentos que na vida de seus protagonistas ou espectadores eram sentidos como excepcionais e vistos como picos da monstruosidade a que jamais se deveria voltar a chegar, isto é, com a consciência plena de que voltar a alcançar tais extremos não era fácil, nem concebível no cotidiano.
Para dizê-lo de maneira simples, havia tréguas e até mesmo a norma era essa, a trégua. Durante todo o tempo a capacidade humana para suportar o horror foi portanto limitada, e um costume secular não pode ser mudado impunemente em poucos anos.
Hoje não há tréguas visíveis, ao menos para o homem ocidental com suas aperfeiçoadas e nítidas televisões que lhe trazem diariamente imagens de algum espanto em algum ponto do globo. É impossível que eles não estejam acontecendo sempre em alguma parte, mas há apenas 50 anos era impensável que em Soria, ou em Gerona, ou em Madri, ou em Londres ou Nova York se soubesse o que estava acontecendo na Ruanda ou na Somália, no Sri Lanka ou na Libéria, a duras penas nos Balcãs, ou se isto ocorresse era com notável atraso, quando as coisas já se tinham passado.
Era verdadeiro aquele conto de Kafka em que os habitantes de uma remota província chinesa se inteiravam da morte de seu imperador talvez quando já estivesse agonizando seu sucessor, se é que o emissário encarregado de levar a notícia não tivesse esquecido durante seu interminável trajeto o conteúdo de sua mensagem (já não me lembro qual das duas era a história, ou se eram as duas). Mais inimaginável ainda era que isto tão distante pudesse ser visto.
A capacidade do ser humano para suportar a violência e a atrocidade não carece de limites, ainda que somente seja porque nunca antes lhe foram visíveis tais excessos em todos e cada um dos dias de sua existência. Agora sim, e isso é uma mudança tão crucial, uma modificação tão brutal na percepção do mundo e de suas ameaças, na percepção do outro -que hoje é sempre bestial em uma ou outra encarnação, seja sérvia, liberiana, ruandesa ou somali-, que de novo aqui o assombroso é que a este ser humano ainda lhe reste algum vislumbre de piedade, alguma capacidade de estremecimento, algum assomo de solidariedade.
Quando nos acusamos de estar cada vez mais insensibilizados, de trivializar o espanto, de combiná-lo com a sobremesa de nossos almoços, enquanto as telas mostram a guerra e a peste e a fome e a exploração, dá vontade de se responder: pudera! O ser humano jamais tinha tido tão presente, tão onipresente dia após dia sem uma pausa, a potência de seus congêneres para a crueldade, seu lado pior que antes somente se manifestava de tempos em tempos.
O tão alardeado "direito à informação" de nossa sociedades é já tão somente uma frase feita e vazia de conteúdo, mero álibi para soltar qualquer coisa para os cidadãos, qualquer imagem. A informação nem sempre é boa em si mesma, nem interessante se não nos diz respeito, nem útil para quem é dela objeto. Eu não sei até que ponto é útil que os habitantes de Soria estejam informados com lentes de aumento do que acontece na Libéria. Provavelmente sim, provavelmente sirva para que em um dia de saturação os cidadãos desta província e de todas as demais pressionem seus governantes para que intervenham e ponham fim -ou ao menos panos quentes- às monstruosidades que viram em suas casas e bares.
Assim foi no caso da Bósnia, ao menos. Às vezes me pergunto, no entanto, se o fato de se saberem com espectadores que se contam em centenas de milhões, se saberem no centro da atenção mundial não é também um estímulo para o exibicionismo sangrento. Não o sei nem posso sabê-lo, e longe de minha intenção pedir limites às informações ou às imagens.
Só sei que a relação dos homens com o horror é outra da que sempre foi, e portanto também sua relação com a vida e a morte próprias e -o que é mais grave- com a vida e a morte dos demais. E a evolução desta mudança já produzida é tão imprevisível como o foi sempre o amanhã, só que então o poeta podia dizer: Amanhã, e amanhã, e amanhã...", como se os contos contados pelos idiotas, ainda que nada significassem, fossem sempre permanecer para serem relatados nas tréguas que já não existem.

Tradução de Ricardo de Azevedo.

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