São Paulo, segunda-feira, 19 de agosto de 1996
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A máquina de fazer candidatos

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

Não são como as de cá, as eleições de lá. Às vésperas da escolha do vice de Bob Dole, os nomes eram examinados à luz de uma ótica singular. Ele é pró-escolha ou pró-vida, se perguntavam os jornais americanos. Pró-escolha ou pró-vida significa permitir ou proibir o aborto.
O tema foi rapidamente superado. O general que comanda a campanha contra as drogas, o mesmo que comandou a invasão do Panamá, deu entrevista dizendo que era uma bobagem explorar esse tema, pois experimentar maconha foi uma experiência de toda uma geração e não há nada demais nisso, desde que as pessoas tivessem compreendido que as drogas são um desastre na vida de cada um.
O general, naturalmente, não estava falando apenas da candidata republicana, mas, de forma indireta, defendia o presidente Clinton, que também experimentou maconha e, em seu favor, costuma lembrar: fumou, mas não tragou.
Esses temas são raros no Brasil. Mas explodiram por aqui, em dois momentos. Nas eleições de 89, a equipe de Collor localizou uma ex-mulher de Lula, e ela revelou que ele havia proposto um aborto.
Foi um abalo na candidatura de Lula, mas não a pergunta não foi estendida a todos os candidatos.
A outra questão, a da maconha, contribuiu para atropelar a candidatura de Fernando Henrique em São Paulo, quando perdeu para Jânio Quadros.
Ele revelou que fumou e não gostou. Os adversários espalharam o boato de que iria distribuir maconha na merenda escolar.
Casos extraconjugais são frequentes nas eleições de lá. Aqui não. Lá nos Estados Unidos, a escolha de Jack Kemp para ser vice de Dole foi um momento decisivo na sua carreira. Ele será o próprio candidato a presidente, quando Dole se aposentar.
Essa pequena diferença pesa. Lá os vices não são apenas substitutos, mas sucessores. Aqui não se definem carreiras políticas com uma dose tão alta de previsibilidade.
Vices tornam-se sucessores ainda no período legal dos presidentes: Tancredo morreu, subiu Sarney; Collor caiu, veio Itamar.
Parece que não há tempo nem disposição de adotar planos de longo prazo, porque os caminhos são bem mais acidentados.
Aqui, no entanto, está despontando um fenômeno que radicaliza a diferença dos processos eleitorais. Não há apenas falta de trajetórias previsíveis, estratégias de reposição de líderes a longo prazo.
Sucessores de administrações que se consideram bem-sucedidas, como no Rio e em São Paulo, são tirados da cartola, são uma surpresa.
Não se trata mais de considerar uma trajetória política, um passado no qual se reconheça um processo de evolução, com erros e acertos. Agora ele é um desconhecido que emerge da máquina administrativa, com o aval de seu líder.
Como se deu, de repente, essa redução da política à sua dimensão técnica? É preciso alguma pesquisa e reflexão para se responder adequadamente.
Publicitários formulam os temas de campanha, slogans e atitudes. Especialistas ensinam a falar em público, estilistas aconselham sobre roupas, acessórios; jornalistas, com experiência política, redigem discursos.
Mergulhado nesse fecundo laboratório, o obscuro colaborador técnico emerge como um novo ser. Seu nome não é mais seu nome, mas um logotipo. A voz recuperou, pelo menos, alguns sinais de emoção, embora ainda esteja soterrada pela monotonia burocrática.
As frases são curtas, prontas para o uso na TV. Não é que os planejadores cuidaram que houvesse, de vez em quando, uma ponta de humor.
Curioso é que esse processo de recriação técnica se desenvolveu lá, nos Estados Unidos, mas de um modo geral para uso de políticos com uma certa trajetória, buscando se diferenciar em uma árdua competição.
Com exceção, é claro, de um outro milionário que decide comprar o pacote técnico e tentar uma carreira solo, como Ross Perot, por exemplo.
Aqui o processo se autonomizou. É possível obter resultados sem que se tenha um passado político que se perca no tempo.
É o processo apenas, por meio do qual o sucessor se transforma em um líder, de uma forma quase tão delicada como a de se achar um novo Dalai Lama.
No Tibete, processos de adivinhação e rituais apontam para a criança que reencarnará o líder espiritual.
No passado, houve também candidatos obscuros saídos da estrutura administrativa. A diferença agora é o avanço do próprio processo técnico que prepara estreantes políticos.
Acoplado à máquina administrativa, o processo cria uma nova máquina: a de produzir líderes sem a mediação da experiência histórica que os formava em outras épocas.
Antes mesmo de julgar as consequências dessa nova tendência, será preciso entendê-la melhor.
Nas eleições proporcionais, já se registrou no Rio o recuo de candidatos com propostas globalizantes em relação aos corporativos.
Eles são o fruto do eleitor de um tema só, personagem que Leslie Turow destacou no seu livro "The Future of the Capitalism", chegando a temer por sua influência negativa na democracia.
Mas isso é tema de um segundo turno, se chegarmos com vida até lá.

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