São Paulo, quarta-feira, 21 de agosto de 1996 |
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Coelho traz Deus remoto
RENATO JANINE RIBEIRO
Por isso, o alfabeto é mais popular: solapa o clero e dá lugar aos homens comuns e à prática pacífica por excelência, do comércio. Assim se opõem paz e guerra, comerciantes e sacerdotes, homens comuns e nobres, alfabeto e hieróglifos. A idéia é interessante. Apesar disso algo me incomoda. Não que eu seja contra literatura espiritual para o grande público. Essa literatura, desde a mais complexa e junguiana até a mais elementar -da astrologia de Liz Greene, da alquimia de Marie Louise von Franz e do tarô de Alfred Douglas, até a angeologia mais simplista- tem o mérito de expor um desconforto com o estado das coisas, uma vontade de mudar o mundo e a si mesmo. Mas, nela, vezes demais o imprevisto é previsto, o problema só é simulado porque já se tem a resposta (ou a solução). Esta é bem simples: dizer que tudo tem sentido, mesmo o aparente absurdo, para o "crescimento" da pessoa. Desaparece assim dessa literatura a habitual distinção entre ficção e não-ficção, porque nela toda história tem uma moral, e a moral geralmente se baseia num relato de experiência. Monta-se uma formidável máquina de geração de sentido, exposto como intrínseco às coisas mesmas. E se decifra, para os leitores o que antes surgia como caótico, sem sentido. Aqui está o problema. Paulo Coelho bem pode afirmar -contra as potestades deste mundo- que cada um deve encontrar o seu caminho, que mudanças são bem-vindas. Mas em sua obra o sentido das coisas, e da vida mesma, resultam mais de uma revelação que de uma construção. O sentido deve ser buscado, mas nem por isso deixa de estar com Deus. E por aí um romance de formação -que retoma uma das tradições mais fortes desse gênero literário- se torna uma espécie de teofania. Fala o deus e dissipa as dúvidas: basta ver o número de frases afirmativas, com verbo "é", emanadas dos mais distintos "sábios", desde o anjo do Senhor até as crianças, sempre ecoando a verdade. Mas de todo modo me fica uma dúvida. O que é sofisticado no espiritualismo atual se deve a Jung, de quem -resumo mal- se retirou a idéia de que o divino é um poder que está em nós. No limite, Deus é uma projeção de nossa aspiração à excelência. Não importa tanto se existe, porque o que conta é o divino em nós. Jung é a fonte, penso, da radical mudança na astrologia durante o século 20, passando de adivinhação atemorizante a auxiliar da psicologia. Mas isso não ocorre em Paulo Coelho. Seu Senhor é o transcendente surdo, o Deus escondido que é uma das vertentes judaico-cristãs, a Quem Elias insiste em fazer falar, mais que esse potencial interno, encoberto, que devemos suscitar. Será Deus o obstáculo, uma absoluta Alteridade que nos desafia? Ou será o sagrado que em cada ser humano pulsa? Para minha surpresa, li em "Monte Cinco" mais a busca do Deus afastado do que a procura do divino dentro de nós. Livro: Monte Cinco Autor: Paulo Coelho Preço: R$ 19,50 Páginas: 280 Texto Anterior: Personagens são destaque Próximo Texto: Valadão vira galã gentil em biografia Índice |
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