São Paulo, quinta-feira, 22 de agosto de 1996
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Obra de Berio tem concerto irregular

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nesses últimos meses, o compositor Luciano Berio, 71 anos, vem apresentando uma série de palestras na universidade de Harvard, integrando-se a um grupo de convidados que, ao longo das últimas décadas, inclui nomes como Igor Stravinski e o escritor Italo Calvino.
Numa dessas conferências (que serão publicadas em breve), Berio esclarece que, para ele, os instrumentos não são apenas "instrumentos", mas sim os "depositários concretos da história, dotados de memória... Os instrumentos falam a música e se deixam falar por ela".
Ninguém poderia ter definido melhor o caráter de sua música, e em particular das "Sequenze", conjunto de 12 composições para instrumentos solo, que formam uma das coleções mais extraordinárias de peças modernas, algo da mesma eminência dos pequenos textos em prosa de Beckett ou dos poemas de John Ashbery.
Com 20 anos de atraso, a "Sequenza IV", para piano, teve sua estréia brasileira terça-feira passada, aos cuidados de Paulo Álvares, no teatro Cultura Artística.
A "sequência", aqui como nas outras peças, refere-se à sucessão de campos harmônicos, dos quais vão brotando as outras funções musicais.
O piano passa a ser um outro "instrumento", um território de ressonâncias (nos dois sentidos), onde vêm-se dar um número de acidentes, que gradualmente compõem uma melodia.
Paulo Álvares, brasileiro radicado na Alemanha, é o "virtuose consciente" por excelência de que falava Berio em sua "Entrevista sobre a Música" (ed. Civilização Brasileira); sua interpretação fez da "Sequenza" uma obra-prima de hesitações e descontroles e de polifonia.
As possibilidades polifônicas da melodia são também o tema de "Linea", uma espécie de "Sequenza" multiplicada por quatro: dois pianos, marimba e vibrafone. Berio é o mais sensual e elegante dos compositores; e "Linea" é uma música arrebatadoramente bonita, com acordes de fazer inveja a Ravel. Foi o ponto alto do concerto, com os dois pianistas e o Duo Diálogos sintonizados e transcendendo a afinação.
O Duo Diálogos, que ainda reflete o brilho de seu primeiro CD ("Contemporary Percussion from Brazil", GHA) abriu o concerto com "Yi", de Tona Scherchen-Hsiao, para marimba a quatro mãos.
Nascida em 1938, filha do regente Hermann Scherchen e de uma professora de música do conservatório de Pequim, Scherchen-Hsiao é conhecida pelos títulos monossilábicos e a música delicada.
Refinados e fluentes, Joaquim Abreu e Carlos Tarcha fizeram o máximo por essa música mínima, mas os perfumes do Oriente, no caso, foram só um aperitivo.
O prato de resistência deveria ter sido a "Sonata para Dois Pianos e Percussão" de Bartók (1881-1945), uma composição definitiva de um dos nomes definitivos do século. Mas depois de um primeiro movimento cheio de música, o grupo foi perdendo energia, e o terceiro movimento, em especial, foi tocado sem nenhum senso de humor. Ficou a sensação de que, na próxima vez, sairia tudo melhor.
Oxalá, mesmo, houvesse uma próxima vez, e mais outra. Irregular como foi, o concerto teve, no mínimo, a virtude de oferecer um programa ambicioso, numa escala de competência compatível com a dos melhores concertos da temporada.
Vinte anos depois, a música de Berio ainda soa, para muitos, como uma música do futuro, cujo tempo ainda não chegou. Ledo engano. Se existe uma música do presente é esta; o presente, aliás, foi ela que inventou. Quem não chegou, até hoje, fomos nós.

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