São Paulo, quinta-feira, 22 de agosto de 1996
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"Trainspotting" é viagem emocional

DAVID DREW ZINGG
EM SP

Esta é uma coluna séria.
Tio Dave acaba de voltar para casa depois de assistir o filme "Trainspotting - Sem Limites", que é uma viagem emocional séria, daquelas que nos deixam mais sóbrios.
Se a vida no Brasil fosse tão fria, sem perspectivas, destituída de esperanças quanto é em Edimburgo ou Glasgow, a Bananalândia seria igualmente repleta de apreciadores do "The Horse" -também conhecido como heroína.
Seja como for, o fato é que um número assustador de cidadãos brasileiros anda fugindo dos horrores da vida diária por meio do crack.
O que significa simplesmente que se você é obrigado a enfrentar o mundo mortífero da pobreza no Brasil, pode fugir para a forma mais barata e acessível de morte em vida que é proporcionada pelo crack.
Não se iluda, Joãozinho. O crescente mercado de drogas no Brasil não se restringe às crianças pobres, fim-de-linha, que perambulam pela Praça da Sé.
Dê uma boa olhada em sua namorada, seus filhos ou o sujeito que passa o dia todo sentado na mesa a seu lado, no escritório. O mercado autodestrutivo de drogas apresenta uma curva ascendente nas vendas que chega a concorrer com seu refrigerante preferido num dia quente de verão.
"Trainspotting" é um filme doloroso de se assistir, porque é tão verdadeiro.
Isso explica por que todos aqueles sujeitos tão decididos a fazer o bem querem de qualquer jeito censurá-lo.
Seu tema básico incomoda aquele pessoal que gosta de dirigir nossa vida por nós: o fato de se optar pela vida não significa que se esteja rejeitando a morte.
Optar pela vida, diz o filme poeticamente, significa simplesmente que você opta por uma fraude em preferência a outra.
No Brasil, o usuário ocasional de drogas é considerado um doente. A lei criminaliza a venda de drogas. Defender ou incentivar o uso de drogas é contra a lei.
Mas não existe lei conhecida pelo homem que torne ilegal o fato de refletirmos que se cada um de nós tivesse uma vida mais plena, mais satisfatória, gastaríamos bem menos tempo e dinheiro nos autodestruindo.
Em um mundo brasileiro onde quase todos nós trabalhamos principalmente para ajudar o minúsculo grupo dos mais ricos a enriquecerem ainda mais, poucos sorrisos vêm alegrar a vida do cidadão comum.
À medida que somos forçados, inexoravelmente, a agir cada vez mais como animais simplesmente para conseguir sobreviver a mais um dia, a vida ficando difícil de aguentar.
"Trainspotting" fala dessa situação trágica, não no Brasil mas na distante Escócia.
Tio Dave acha que o filme vai fazer as pessoas repudiarem a heroína e as drogas de modo geral. Talvez sejamos forçados, pelo menos por enquanto, a viver acordados a cruel ilusão que se faz passar por vida.
Mas o drama elegantemente decadente que é "Trainspotting" pode te ajudar a refletir sobre alguns aspectos elegantemente infelizes da vida aqui nos ensolarados trópicos.
Empréstimo e roubo
Se você se recusa a refletir sobre as disparidades sociais brasileiras, vou te mostrar outra ótica sob a qual enxergar "Trainspotting".
Abra bem os olhos, preste muita atenção e veja se você é capaz de identificar as homenagens a outros filmes que estão escondidas no drama.
* A auto-injeção ritualística de heroína é mostrada em todos seus detalhes escabrosos, fetichistas. (Em "Drugstore Cowboy", o ritual da auto-injeção de drogas farmacêuticas é mostrado em todos seus detalhes escabrosos, fetichistas.)
* Um ator, Renton, é trancado em um quarto para lutar contra os sintomas decorrentes de ter parado de tomar a droga. (Em "O Homem do Braço de Ouro", Frank Sinatra é trancado num apartamento para lutar contra os sintomas decorrentes de ter parado de tomar a droga.)
* Os heróis fogem pelas ruas de Edimburgo, numa fantástica cena de perseguição. (Em "Os Reis do Iê-iê-iê", os Beatles fogem pelas ruas de Londres, numa perseguição frenética.)
* Dois atores conversam numa discoteca e não se ouve suas vozes em meio à música, em alto volume. O diálogo aparece em legendas, na parte inferior da tela. (Quando os atores conversam num restaurante de beira de estrada em "Twin Peaks" e não se ouve suas vozes por causa da música em alto volume, o diálogo aparece em legendas na parte inferior da tela.)
* Um ator tem alucinações provocadas pela falta da droga. Nessas alucinações, aparece um bebê morto cuja cabeça gira loucamente. (Em "O Exorcista", a cabeça da criança possuída pelo demônio, Linda Blair, gira loucamente.)
Como disse a revista "Details", "o talento empresta, o gênio rouba".

Tradução de Clara Allain

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