São Paulo, sexta-feira, 23 de agosto de 1996 |
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Torga faz prosa com poesia
JOSÉ MINDLIN
Convidado a comentar este último lançamento, creio que é desnecessário falar sobre o próprio Torga, um dos melhores escritores portugueses de nosso tempo, mas confesso que este livro foi para mim uma boa surpresa. Conhecia os "Contos e os Novos Contos da Montanha", sua poesia, e parte de seu "Diário", mas este é um livro diferente. Falo em confissão e surpresa por não se tratar de livro recente, e sim da década de 60. Mas me tinha escapado, e até foi bom, pois surpresas desse tipo são sempre agradáveis. "A criação do mundo" poderia chamar-se "Percurso de uma vida", o que daria desde logo idéia do que é o livro, mas seria certamente um título menos poético e sugestivo. O mundo de que o livro trata não é o nosso, global, e sim o de Torga, mas isso não é desde logo aparente, pois ele se coloca sob a forma de personagem daquilo que a princípio parece um romance muito bem escrito, que se passa numa aldeia de Trás-os-Montes com um nome que não existe. É verdade que a introdução deixa claro que estamos diante de um livro de memórias, mas, mesmo assim, fica-se às vezes em dúvida se é uma autobiografia ou um romance. No livro, e na vida de Torga, há de tudo: ternura, inteireza de caráter, espírito de luta, gosto pela aventura, intransigência na oposição ao salazarismo. Uma vida de sofrimentos e de vitórias, mas estas duramente conquistadas, e que não aprecem em absoluto ter feito dele um homem feliz. Os "dias de criação" vão se sucedendo com toda a diversidade de uma vida atribulada e conseguem manter permanentemente o interesse do leitor. A descrição da infância de um menino pobre numa aldeia é primorosa. Sua vida de estudante, a princípio num seminário, e depois em Coimbra, quando se evidenciou a falta de uma vocação religiosa, dá bem idéia dos obstáculos que teve de vencer. Sua vinda ao Brasil, com as decepções que encontrou, e o duro trabalho na fazenda de um tio, são descritos em páginas de certo modo comparáveis com a aventura "A Selva", de Ferreira de Castro. Vem depois seu enfrentamento com a violência da Espanha de Franco, e mais ainda a de Portugal, com a perseguição que sofreu. No final, apesar do 25 de abril, assim como de seu sucesso literário, e da tranquilidade material que conseguiu, vemos a comovente solidão de um homem. A prosa de Miguel Torga é envolta numa aura de poesia, que faz de "A criação do mundo" um livro que se lê com um misto de prazer e de emoção, mas sempre com muito interesse. Merece ser lido. Livro: A criação do mundo Autor: Miguel Torga Preço: R$ 30 Texto Anterior: Katz acha heterossexualidade disposição não-natural Próximo Texto: Buemba! Em São Paulo abunda Pitta! Índice |
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