São Paulo, sábado, 24 de agosto de 1996
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Leitor e escritor suspeitam das palavras

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Não sei exatamente quando, nem exatamente se o presidente Fernando Henrique pediu que não lessem mais seus livros, isto é, que não ficassem comparando o que faz um presidente com o que escrevia um sociólogo antes de ser governante do país.
Dou de barato ao presidente que a situação é incômoda. O mais aconselhável é governar e escrever memórias depois. Ou aguardar os estudos históricos e biográficos que virão. Aliás, não esqueçamos que as duas figuras talvez as mais respeitadas da história do mundo ocidental -Sócrates e Jesus- não deixaram escrita uma palavra que fosse.
Mas estou fugindo, ou ampliando de maneira exagerada, meu assunto, que é na realidade um ensaio escrito em 1950 pela escritora francesa, ainda que russa de berço, Nathalie Sarraute. O ensaio se chama "A Era da Suspeita" ("L'Ère du Soupçon") e marca na literatura o momento em que o leitor deixou de acreditar no que lia.
Fui reler esse velho mas atualíssimo texto porque vi outro dia no "Mais!" que Betty Milan vai publicar pela Record um livro de entrevistas em que aparece, luminosamente inteligente, Nathalie Sarraute, que tem 94 anos de idade.
Na entrevista, Nathalie (cuja obra saiu afinal na Pléiade, o que é um meio Prêmio Nobel) fala sobre muitas coisas, mas, para o meu gosto, não fala bastante sobre sua descoberta em "A Era da Suspeita". Embora ela se limite a examinar, no ensaio, a ficção do seu tempo, acaba por ir muito mais longe.
Toda grande ficção, como a de Dickens, Balzac ou Machado, passa eventualmente a fazer parte da história dos respectivos países. Nathalie de fato escreveu a respeito da nossa perda de confiança na palavra em geral. Previu que o homem ia acreditar cada vez menos no que lê e escuta.
A tese, em 1950, parecia limitada. O leitor, "depois de Joyce, Proust e Freud", não se deixava mais possuir por personagens de romance, inventados então de acordo com fórmulas ultrapassadas. A crise foi tão súbita e forte que o autor também, o romancista, começava a não acreditar no que criava. Suspeita pega.
O recurso que havia naqueles dias era o cinema, que se encarregava da invenção de histórias coerentes, em ambientes familiares, tudo fiel ao romance que morria. Ou partia para os grandes e espetaculares milagres, como Sansão derrubando as colunas do templo ou Moisés dividindo o mar em dois, para atravessá-lo a pé enxuto.
Mas -não deixava Nathalie de perceber- o próprio cinema, ainda que tão mais jovem, já começava também a apresentar sintomas de uma sofisticação pouco confiável. A suspeita ganhava as telas. Passada a fase mais ingênua e "cinematográfica" do cinema, cada vez mais seus diretores lembravam escritores munidos de câmeras.
Fala Sarraute: "Está por sua vez o cinema ameaçado. Tomado pela 'suspeita' de que sofre o romance. Caso contrário, como explicar essa inquietação que, na trilha dos romancistas, impele certos diretores de cinema a fazer filmes na primeira pessoa, criando o olho de uma testemunha ou a voz de um narrador?".
E que achava Nathalie da pintura? Não estaria sob suspeita? "Da mesma forma", observa ela, "o pintor moderno arranca o objeto do universo do espectador e o deforma, para dele extrair o elemento de pura pintura".
No entanto, o que mais preocupa Nathalie é encontrar caminhos novos para si mesma, isto é, para a literatura, o romance. E assim chegamos aos seus "tropismos", um caminho áspero mas novo de realmente mergulhar nos personagens a criar.
Sua idéia é como que plantar o leitor num canteiro de flores, de hortaliças. Seu objetivo é nos mostrar intenções e emoções surgindo dentro de uma pessoa como rebentos, raízes em formação. O monólogo interior, de que tanto se falava naquele tempo, devia ser "um borbulhar sem conta de sensações, de imagens, de sentimentos, impulsos, pequenos atos larvais que nenhuma linguagem interior consegue exprimir, que se chocam às portas da consciência, se juntam em grupos compactos e se desfazem de repente (...) enquanto continua a se desenrolar em nós, como a fita trepidante de um teletipo, o fluxo incessante das palavras".
A única coisa que Nathalie me faz lembrar, na literatura brasileira, com seus tropismos, são versos de Augusto dos Anjos. O famoso soneto dele da "Idéia", em que tenta descrever como ela se forma e se manifesta, desde "o encéfalo absconso que a constringe", é uma aventura linguística extraordinária.
Na entrevista a Betty Milan, Sarraute faz, risonha, um trocadilho entre tropismo e tropicalismo. No soneto de Augusto existem os dois elementos. A "idéia" dele, ao sair do encéfalo absconso, "chega em seguida às cordas da laringe". Quebra, então, "a força centrípeta que amarra e de repente, quase morta, esbarra, no molambo da língua paralítica". A "idéia" brota em nós feito uma castanha, ou um tumor. Um tropismo.
Em 1948 Nathalie Sarraute escreveu o romance "Retrato de um Desconhecido", que, apesar do prefácio de Sartre, foi recusado pela Gallimard. Mas ela escreveu outros romances e paira acima dos demais papas do velho "nouveau roman". Excluído, acho eu, Alain Robbe-Grillet que, ao escrever "O Ano Passado em Mariembad", fez, ao mesmo tempo, a obra-prima que temos, e que ele próprio denominou "ciné-roman". Um livro único, fim de raça, diriam os franceses.
Observemos que, quando invocava uma máquina poderosa naquele tempo como o teletipo, Nathalie sentia o crescente e ameaçador rumor tropista e tropicalista das comunicações. De 1950 para cá, e sobretudo a partir do fim das ideologias, vivemos sob o bombardeio visível e audível das notícias, das artes, das guerras, dos desastres e catástrofes. Que cada dia nos comovem menos.
"A Era da Suspeita" será provavelmente o nome do nosso tempo, quando virarmos era.

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