São Paulo, domingo, 25 de agosto de 1996
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A inevitável queda do pseudônimo

MOACYR SCLIAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Primary Colors", obra de ficção recentemente publicada nos EUA, despertou controvérsia por duas razões. Em primeiro lugar, trata-se de um "roman à clef" sobre os Clintons (no livro: Jack e Susan Stanton), personagens sempre interessantes. Além disto, o autor era mencionado apenas como Anonymous, e sua identidade gerou muita discussão. Evidentemente, tratava-se de alguém familiarizado com os bastidores da política norte-americana -Henry Kissinger chegou a ser mencionado-, mas que parecia resolvido a não aparecer em público.
Escrevendo para o "New York Times Book Review", o suplemento literário do importante jornal nova-iorquino, "Anônimo" garantiu que não estava usando informação privilegiada nem traindo a confiança de ninguém. Queixando-se de estar vivendo uma esquizofrênica situação de dupla identidade, "Anônimo" disse que a decisão de não se revelar como autor tinha sido combinada com a editora, Random House: um truque publicitário.
Era, como logo se viu, um segredo de polichinelo. Sem demora o "Washington Post" (e quem mais?) estava identificando "Anônimo" como Joe Klein, colunista da "Newsweek". Criou-se então uma situação embaraçosa tanto para o jornalista como para a revista. Klein tinha sido apontado como autor -e negado vigorosamente, o que foi rotulado, por amplos setores da imprensa americana, como uma forma de mentir descaradamente. Além disto, membros do staff de "Newsweek" sabiam da verdade, e também não contaram. Final da história: Klein foi despedido -para depois ser readmitido. O prejuízo é mais moral do que financeiro; tendo a esta altura faturado, segundo se diz, US$ 6 milhões, Klein deve estar muito pouco preocupado com o leite das crianças.
Mas o episódio é ilustrativo por uma outra razão. Mostra como evoluiu a imagem do anonimato na literatura. Este é um problema que não existia no passado. Quem escreveu a Bíblia? Quem escreveu o "Kalevala", o grande poema épico da Finlândia? "O autor, o autor" é um brado que nem sempre ecoou no cenário literário. Aqueles que escreviam os textos nem sempre os assinavam, ou porque não era necessário ou porque havia razões para não fazê-lo. Às vezes permaneciam anônimos. Às vezes, e isto mais recentemente, usavam pseudônimos.
Há uma diferença entre estas duas posturas. Joe Klein a princípio pensou num pseudônimo: Nicholas Badnaille, este sobrenome uma versão dele para (claro) Machiavelli, que, segundo alguns, deriva da expressão "unhas ruins", ou, em inglês, bad nails (unhas também aparecem no brasão da família Machiavelli). O uso de pseudônimo parece menos suspeito, e menos desagradável, do que o anonimato puro e simples. A pseudônimos recorreram escritores, e outras pessoas, nos últimos séculos.
Jean-Baptiste Poquelin pode ser um ilustre desconhecido, mas Molière não o é; Louis Farigoule é uma figura misteriosa, mas Jules Romains é bem conhecido. Hector Munro -quem é? Ora, trata-se da figura real por trás do contista Saki. Quem desconfiaria que, atrás do "nom de plume" Susana Flag ocultava-se Nelson Rodrigues? O número de pseudônimos na história literária é tão grande, que chegou a justificar uma obra de investigação sobre o tema, do inglês Willard Espy (notem a semelhança deste sobrenome com "spy", espião).
Karen Blixen deve ter achado que causaria mais impressão sob o pseudônimo masculino de Izak Dinesen do que assumindo seu nome feminino. De outra parte, literatura não é um ofício do qual seus portadores tenham sempre orgulho; Mário de Andrade lamentava não se ter formado em medicina, para poder colocar, na ficha dos hotéis, "médico" em vez de "escritor". O pai de Naftali Ricardo Reyes não gostava de ver o filho, adolescente, rotulado como poeta. Nasceu assim o pseudônimo Pablo Neruda, que é, por sua vez, uma homenagem ao escritor tcheco Jan Neruda.
Às vezes um pseudônimo pode ser uma medida de segurança. Foi esta a razão que levou Vladimir Ilich Ulianov e Lev Davidovich Bronstein a usarem os nomes de Lênin e Trótski. Mas em termos de motivos políticos por trás da literatura a história mais fantástica talvez seja a de B. Traven.
Autor de vários e famosos romances, entre os quais "O Barco da Morte" (1926) e "O Tesouro de Sierra Madre" (1927), este transformado num belo filme com Humphrey Bogart, B. Traven permaneceu, durante os 40 anos que viveu no México, uma figura absolutamente misteriosa. Nunca deu entrevistas, nunca apareceu em público, e todo seu contato com editoras era feito por intermédio de um discreto agente.
Chegou-se a suspeitar que, por trás do pseudônimo, escondia-se Adolfo Lopez Mateos, numa época presidente do México. Só recentemente o mistério foi -mais ou menos- esclarecido. B. Traven não era mexicano, mas alemão de origem. Seu nome era, talvez, Otto Feige, mas assinava-se Ret Marut. Envolvido com o movimento anarquista, teve de fugir, e foi então que veio para o México.
Os pseudônimos às vezes funcionam, às vezes não. No caso de Fernando Pessoa, os heterônimos correspondiam, legitimamente, a diferentes vivências literárias. Patética, porém, foi a experiência de Doris Lessing. Convencida de que a crítica estava mais atenta à sua reputação do que à qualidade de sua obra, Lessing escreveu um livro sob o pseudônimo de Jane Somers. De fato, o romance passou despercebido -mas, segundo muitos críticos, o fato resultou mais da baixa qualidade do trabalho do que do nome desconhecido da autora.
Joe Klein tentou defender seu anonimato. Desta forma, diz, poupei meus amigos de minha possível fanfarronice. "±'Anônimo' é mais reservado e digno do que eu... o anonimato impõe uma disciplina estrita e uma humildade quase religiosa. Sou uma pessoa melhor, e mais livre, por ter me mantido em silêncio.±"
Talvez. Mas numa coisa Joe Klein errou: a nossa época já não tolera o anonimato nem o pseudônimo. O culto ao narcisismo que, diz Christopher Lasch, permeia a nossa sociedade, estendeu-se mesmo a esta modesta e contida atividade que é escrever. O escritor tem de estar ao lado de seu livro -nas entrevistas, nas sessões de autógrafo, nos programas de TV. Proceder de maneira diferente é um ultraje. E foi por este ultraje que Klein na realidade pagou.

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