São Paulo, domingo, 25 de agosto de 1996
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Ishiguro escreve para divãs

RYOKE INOUE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um pianista, Ryder, chega a uma cidade européia onde é ansiosamente esperado e é recebido com honras de chefe-de-estado. Todos o admiram muito, todos querem falar com ele, querem sua opinião sobre os mais diversos assuntos. Até mesmo o carregador de malas do hotel -um magnífico hotel, por sinal- pede-lhe conselhos e sugestões. Pede-lhe, inclusive, que vá falar com sua filha, tentar fazê-la encarar a vida.
Ryder, que está com a agenda superlotada, marcada pela senhorita Stratmann, sua assessora, a princípio hesita mas, depois de um certo tempo, concorda e vai falar com a moça Sophie. Encontra-a acompanhada do filho de dez anos, Boris, e a partir desse momento começam as complicações. Os compromissos, marcados com antecedência de meses, não são cumpridos porque a cada instante surge um novo problema que Ryder deve resolver para não decepcionar os habitantes da cidade. Estes, por sua vez, estão preocupadíssimos em mudar, em alterar velhos hábitos e em eleger novos valores. Brodsky, um pianista que já foi muito considerado, tornou-se alcoólatra por causa de um amor frustrado e quer recuperar seu lugar na sociedade, lugar este que está sendo ocupado por um outro músico, Christoff, considerado por alguns como charlatão.
Tudo isto, dito assim, pode levar a crer que se trata de um livro banal, de um romance psicológico parecido com muitos outros ou, pelo menos, do mesmo nível. Mas não é. E permite indagar com muita seriedade se a Rocco ao menos folheou o livro em inglês ou se ficou satisfeita apenas com o curriculum do autor e com o preço pago pelos direitos editoriais.
"O Desconsolado" é de desconsolar qualquer um. Há uma tal misturada de fatos e personagens -surgem personagens do nada, dependurados em linhas completamente fora do "plot" principal ou de qualquer "plot" secundário que, sem uma memória de computador, fica absoluta e literalmente impossível lembrar deles e relacioná-los com o que quer que seja. As discrepâncias com o que seria possível -por exemplo, uma conversa de mais de 15 minutos enquanto o elevador está subindo do térreo para o pavimento onde Ryder ficará hospedado, o que nos leva a perguntar qual a altura desse prédio ou qual a velocidade do elevador- fazem pensar que Kazuo Ishiguro simplesmente transcreveu um sonho- ou um pesadelo- fazendo suceder os fatos exatamente como eles lhe apareceram, sem nem ao menos se preocupar em ordená-los.
Todos os diálogos são desencontrados. Alguns personagens são relativamente constantes durante todo o texto e estes -para não fugir à incoerência geral que pontua todo o trabalho- têm um comportamento absolutamente impertinente, intempestivo e extravagante.
Os diálogos, além de incoerentes, são constituídos por discursos longos e complicados demais, excelentes para o divã de um psicanalista e próprios para deixá-lo mais louco que seu paciente. No geral, há uma preocupação do autor em mostrar problemas decorrentes de desajustes familiares e sociais, bem como de deixar claro -o que para ele acabou por se revelar impossível, ficou incrivelmente obscuro- o pequenino mundo de uma cidade de interior. Uma cidade de interior que possui um hotel pelo menos cem vezes maior que o maior hotel que qualquer um de nós possa imaginar, tendo em vista a inacreditável quantidade de corredores, salas e saguões que o autor descreve.
Aquele que ler "O Desconsolado" e nele encontrar algum consolo, com toda a certeza deve procurar com extrema urgência um psiquiatra.

Ryoki Inoue, 50, já escreveu 1.043 livros. Na Bienal está lançando quatro títulos: "Sequestro Fast-Food", "Magia Cigana", "Caminho das Pedras" e "Do Mago ao Louco"

Livro: O Desconsolado
Autor: Kazuo Ishiguro

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