São Paulo, terça-feira, 27 de agosto de 1996 |
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Vendo o trem passar entre uma ilusão e outra
MARILENE FELINTO
A leitora se recusa a outro contato com os Correios, mesmo porque já fez a devida reclamação, obtendo como resposta o lacônico "extravio por falha operacional". A ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos) queixou-se da minha demora em responder o e-mail. Não fosse pelo simples fato de eu estar consultando a leitora sobre o caso, já teria servido para alguma coisa os Correios sentirem na pele o que é esperar uma resposta que não vem. * Impossível entender por que um advogado de São Paulo quis proibir a exibição do filme britânico "Trainspotting: Sem Limites", de Danny Boyle. A questão apresentada no filme é apenas uma: escolher entre a ilusão de paraíso que a droga dá e a fábrica de ilusões que a vida é. Ou, em termos mais explícitos e grosseiros, escolher entre escravidões: entre o prazer proporcionado por um pico de heroína e o prazer proporcionado por uma pica. Ao contrário do que aparenta, o filme nem propõe a escolha pela droga nem entre a droga e a vida. Na história, e esse é o lado poético dela, droga e vida são a mesma e única coisa. Para os quatro rapazes escoceses perdidos em Edimburgo, vício e amor são faces da mesma moeda sem valor. Talvez o advogado não tenha suportado ver na película o que há de pior no comportamento humano: a semelhança entre o vício da droga e a servidão amorosa. Para assegurar seu prazer ou sua droga, o personagem Renton não mede distância para "ferrar" quem aparecer na sua frente, para roubar, trair e ferir. A síndrome de abstinência de Renton não deixa de ser a metáfora da falta, a dor do prazer perdido. A escravidão é a mesma. A relação de dependência da droga padece da mesma mesquinharia, possessividade e neurose dos extremos das relações amorosas. Uma pessoa deixa de ter vida própria para ser apenas sombra da outra. Um parceiro está para o outro assim como um cão guarda um pedaço de osso roído e corroído, mas do qual ninguém pode se aproximar. Trata-se do mesmo processo de prostração, de auto-anulação. A droga esmaga Renton com o mesmo peso de elefante com que um parceiro esmaga o outro -nada sobra do que se pensava ser um indivíduo. Nesse filme tão grosseiro quanto a vida, o impressionante é que o mais psicopata dos quatro Beatles apocalípticos é o único que não usa drogas, o que vive a ilusão da vida real sem artifícios -o violento assassino Francis Begbie. A solução são os antídotos, as metadonas, as outras ilusões de conquista do mundo -as máquinas, as geladeiras e fogões que Renton vai comprar com o dinheiro roubado dos amigos, os amores que Renton vai tratar como máquinas, brinquedos que ele liga e desliga quando lhe convier. E-mailmfelinto@uol.com.br Texto Anterior: Juiz adia o julgamento de Paula e Pádua Próximo Texto: ONGs priorizam trabalho com meninos Índice |
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