São Paulo, terça-feira, 27 de agosto de 1996
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Americanos invadem Terra em 'Independence Day'

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Fui ver "Independence Day". E saí com a certeza de que os ETs dominaram o mundo. Os ETs são os americanos.
As provas estão todas no filme. Para além do "enredo" visível, o filme mostra outras invasões... O filme mostra que, depois da guerra fria, os americanos entraram em "frenética lua-de-mel" consigo mesmos.
Depois de uma certa humildade que o socialismo vivo provocava, depois do muro de Berlim, os americanos passaram a achar que "vida" e "América" são a mesma coisa. Ser é ser americano.
Nem o mais delirante filme de propaganda soviética teve esse descaro luminoso ao vender um sistema político. O verdadeiro cinema político é o filme americano.
Quais são as mensagens subliminares que o filme envia?
"Independence Day" vende a América.
Ao contrário dos antigos comunas ou dos nazistas de Goebbels, que vendiam um "futuro", um paraíso soviético ou um Reich de mil anos, os EUA vendem o "presente".
Americano não tem futuro. Só presente, um enorme presente prático, feito de objetos e "gadgets", serviços e sentimentos óbvios.
"Independence Day" vende o cotidiano da América, não um fim. Não a felicidade futura, mas a competência de hoje. O mito obsessivo do controle sobre o funcionamento da vida.
Americano odeia dúvidas. Odeia finais ambíguos. Dúvida é coisa de mulher. Cultura da certeza, certezas de machos. Este filme é um filme de macho. A América agora só faz filme de macho. Vejam "A Rocha", com o grande Sean Connery.
Americanos vendem seus machos que salvarão o mundo, contra os dissidentes, drogados e terroristas perversos que ficam atrapalhando a vitória do capitalismo. Ou então, contra os extraterrestres. Quem são os ETs? Serão os imigrantes? Serão os que moram fora da terra americana? Serão os chicanos, islamitas, os excluídos, nós, de Governador Valadares? Quem ocupará o lugar dos comunas?
Vemos no filme que os americanos estão meio desamparados sem inimigos reais. Como justificar uma cultura paranóica sem um inimigo? Há pouco tempo, os ETs eram simpáticos salvadores metafísicos nos trazendo amor.
Agora, voltaram a ser maus. Sem inimigos, que será da indústria bélica? Sem perdedores, como seremos "winners"? A globalização da economia é a invasão do sistema americano de vida. Por outro lado, o filme é também uma metáfora nacionalista e de protecionismo econômico.
Show-room
Antigamente, sofríamos no enredo, esperando que tudo acabasse bem. Hoje, já sabemos que tudo "tem" de acabar bem, mas o bom é sofrer os infernos do suspense até chegarmos ao fim feliz.
No filme americano, os verdadeiros personagens são as Coisas. Personagem é só um pretexto para mostrar o "décor", o que está em volta. E o "décor" é um grande "show-room" dos produtos: maravilhosos aviões, os supercomputadores, a genialidade tecnológica.
Os personagens não fogem de um conflito; fogem dos produtos. E os heróis não são políticos nem cowboys nem super-homens. São o homem comum, com incrível competência mecânica, heróis "do-it-yourself" épico, cuja Bíblia seria a "Popular Mechanics". Neste filme, os ETs são vencidos por um "laptop", um computador portátil que Jeff Goldblum usa para instalar um vírus na nave-mãe. Genial!
A idéia de paraíso americano é a perfeição do funcionamento. O único inferno que pode surgir seria o inferno do infalível, quando tudo será previsível, programável. O destino em disquete, o software do futuro.
E quem vence os extraterrestres não é o exército, não é a coletividade organizada. Quem vence é sempre o indivíduo sozinho e sua incrível competência de improvisar. Quem salva o mundo são três homens comuns, numa ciranda politicamente correta: o negro, o branco "wasp" e o judeu.
Esse trio tem um coadjuvante, o perdedor, o "loser", um excluído, alcoólatra, pai de chicanos, que se redime no final, morrendo para o bem do mundo. Para além das diferenças de raças, eles são unidos pela "americanidade".
Pornô e ação
Mas o filme também nos vende produtos "espirituais". Quais são? Vende-nos a mulher linda dividida entre o amor e o dever político. Vende-nos a "stripteaser" negra honesta que consegue unir as atividades de puta com as de mãe coragem; vende-nos o negro destemido soldado e "rapper", discriminado mas patriota; vende-nos o pai judeu aposentado, "wailing jew" que acaba dando a idéia para salvar o mundo; vende-nos a redenção dos fracassados, vende-nos a idéia de que os soldados russos, franceses e italianos são uns bobos, desarvorados sem imaginação nem técnica.
O filme é de uma eficácia assustadora. Por que tanta eficiência no roteiro? Os roteiros não são bons, mas são eficientes. São cada vez mais feitos em computador, de modo a não deixar nenhum respiro para o espectador. É preciso encher cada buraco, para que nada se infiltre na atenção absoluta.
Os efeitos especiais são muito mais importantes que os conflitos psicológicos, que lembram aquelas introduções de filmes pornográficos que precisam de uma desculpa antes de mostrar a "real thing". Não importa o enredo; só o gozo da cena. A mesma busca de visibilidade total que tem o filme pornô, tem o filme de ação.
O orgasmo dos filmes de ação são os efeitos especiais.
Que será de nós?
O filme atende a todos os desejos. Atende até aos desejos dos "unabombers" e terroristas. A América é destruída com fogo e sangue, numa incrível violência. A América é retorcida, liquidificada, espatifada com amor e ódio. Há um desejo de ruína, misturado com patriotismo.
Os marginais vibram quando os ETs destroem a Casa Branca e vibram também quando o negro vence corrida contra o disco voador. O filme atende a todos nossos desejos, destrutivos e patrióticos, e saímos com a alma lavada. Por que de alma lavada? Saímos protegidos. Saímos do cinema com a frase na cabeça: "que seria do mundo sem os americanos?" Estaríamos perdidos, nos dizem eles. Talvez. Mas teríamos outro ritmo, outro "timing" no planeta.
Por outro lado, nada é parte de um complô feito para nos "lavar o cérebro". Nada disso. Não é uma propaganda consciente. Não há Comitê Central nem CIA, por trás. Os americanos já são um produto deles mesmos; se reproduzem por cissiparidade, acreditam no que dizem.
A sinceridade é sua arma total.

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