São Paulo, quarta-feira, 28 de agosto de 1996
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Maluf apela para a política do privilégio

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Por que Celso Pitta cresceu tanto nas pesquisas eleitorais? Quem vota nele e aprecia a gestão Maluf tem uma resposta simples -merecimento, talento, ou, para não fugir ao clichê, "trabalho e competéééncia", como sempre diz o atual prefeito.
Já nos meios petistas a discussão se torna mais complicada. Um argumento corrente é criticar a estratégia de comunicação adotada na campanha de Erundina. Não vejo assim. O sucesso de Pitta não se deve ao marketing simplesmente, mas a uma preferência política real. E adianta muito pouco ao PT mudar sua estratégia publicitária. Uma Erundina mais agressiva pode agradar aos militantes, mas não muda a inclinação do eleitorado pelo neomalufismo.
Todos sabem que Maluf fez muita coisa. Mas o que precisa ser mais bem explicado é esse fascínio popular pelas obras da prefeitura. É comum a crítica de que as realizações de Maluf se concentraram nas áreas nobres da cidade; que no túnel Ayrton Senna ônibus não entra; que tanto dinheiro poderia ser empregado em projetos de maior alcance social.
A esta altura da campanha, já foi apontado que o projeto Cingapura, por exemplo, só atendeu a pouquíssimas famílias -3,5 mil, contra cerca de 35 mil atendidas pelas casas populares na gestão Erundina.
Mas insistir sobre estes pontos não tiraria muitos votos de Pitta. Por que esse tipo de crítica simplesmente "não cola"? É como se o eleitorado não quisesse saber disso. Aqui tento uma explicação.
Vejamos o Cingapura. Os mutirões e financiamentos tradicionais à casa popular foram capazes de números mais expressivos. Ocorre que, dada a carência gigantesca de moradias em São Paulo, 3,5 mil ou 35 mil equivale aproximadamente à mesma coisa, a um número próximo de zero...
A diferença, por certo, é que o Cingapura tem mais visibilidade e foi bem explorado em termos de marketing. Mas não se trata só disso. Ao contrário de um financiamento para mutirões, o Cingapura vem prontinho e bonitinho. Muda a paisagem; acena, propagandisticamente é claro, para uma cidade sem favelas.
Mesmo que atenda a pouca gente, o Cingapura funciona melhor do ponto de vista eleitoral. O favelado provavelmente não irá mudar-se para um apartamento desses. Mas vota numa esperança mais completa, mais acabada, do que a oferecida pelo sistema de mutirões.
O raciocínio é semelhante ao das loterias. O sujeito que aposta na Sena sabe que tem pouquíssima chance de acertar. Tem, contudo, mais esperança no seu número do que numa política de distribuição de renda que, através de muita mobilização no Congresso, haverá de reverter o quadro de injustiça etc. etc...
Há, digamos assim, uma luta entre a "possibilidade" concreta e a "intensidade" psicológica da esperança que se propõe ao eleitor. O sonho de ser milionário é mais irreal do que o sonho com uma sociedade mais justa. Em compensação, mobiliza mais a fantasia.
O caso das grandes obras viárias é semelhante. O eleitor pobre não ignorará que, no fundo, não foram feitas para ele. Mas o fato é que existem. São a demonstração de uma possibilidade, de um poder. Algum dia terei um carrão; este túnel foi feito para mim -no futuro.
Este raciocínio, por mais delirante que pareça, tem mais apelo do que o argumento crítico: "Não, esta obra não era necessária... com o mesmo dinheiro poderiam ter sido criadas 2.000 creches..." De alguma forma, a existência da grande obra elimina a especulação retrospectiva. Depois de pronta, fica uma beleza; torna-se indestrutível. O que poderia existir em seu lugar vira pó. E o verbo "poderei" -"algum dia eu poderei ter um carrão"- vale mais do que o verbo "poderia" -"poderia ter sido diferente".
O capitalismo sempre funcionou, aliás, porque mobiliza esperanças individuais de enriquecimento ou pelo menos de progresso na vida. São especialmente fortes para a população pobre, a não ser em casos de completo desespero e impermeabilidade social. Como o sistema sozinho instaura uma situação de competitividade violenta entre indivíduos, também é individual e competitivo o sonho que cada um projeta.
No Brasil, onde o contraste entre pobreza e privilégio é dos mais acentuados, o efeito provavelmente se acentua. A propaganda do PAS, mostrando um helicóptero de socorro médico, como nos melhores anúncios da previdência privada, apela não para a idéia de justiça coletiva, de bem-estar geral, mas sim para a idéia de privilégio... o apartamento no Cingapura é, como a loteria, o privilégio ao alcance de todos.
Como o privilégio é tradicionalmente atribuído, na ideologia do capitalismo, ao trabalho, ao talento, à "competéééncia", e como, afinal, os pobres trabalham muito, a idéia de um prefeito que trabalha, que age como patrão e não como "companheiro", tende a ser aceita como a mais natural e certa do mundo.
Quem fala no que "poderia ter sido" apenas "fala", enquanto quem fez, este sim, trabalha como eu e -melhor, diferente de mim- além de tudo manda. Este o raciocínio, creio, do malufismo popular.
Idéias de solidariedade coletiva, de futuro possível de equidade, de participação democrática, tendem a tornar-se assim obscuras para a maioria da população, que se defronta com uma realidade "mais real" e com um sonho mais nítido, menos argumentado, do que o socialismo. Natural que se vote, então, em qualquer coisa que não seja de esquerda. A realidade do capitalismo se reproduz exatamente por ser tão realista assim.

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