São Paulo, sexta-feira, 30 de agosto de 1996
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Em defesa das minorias sexuais e em própria defesa

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Fatalidade biológica, karma, simples hereditariedade, educação deficiente, maus exemplos e más companhias durante a primeira infância ou apenas maldita e condenável tendência para a aberração.
Deu-se que me tornei heterossexual quando a natureza e o mundo me obrigaram à opção do que fazer e de como administrar a minha sexualidade.
Não coro em afirmar -ou não coro em afirmá-la sempre que me perguntam a respeito.
Reconheço a anormalidade. Invoco a liberdade moral e mental que pouco a pouco está superando os conceitos e preconceitos medievais que usavam fogueiras purificadoras para livrar a sociedade das excrescências.
E das bestas humanas que, na calada das noites, no leito de feno das estrebarias, à beira das estradas e às margens dos rios, e sobretudo nas alcovas legalizadas pelo vício e pela religião dominante, tombavam suas conquistas e saciavam seus instintos animalescos com as mulheres.
Não seria o caso de acusar a sociedade atual de excessivo rigor no que diz respeito à moral e aos bons costumes.
Aceito e louvo a abertura que aboliu castigos para as minorias, procurando incorporá-las ao corpo social das nações.
Infelizmente, a discriminação ainda vigora nos segmentos mais nobres da sociedade.
E os heterossexuais -como os tabagistas e os admiradores do Tiririca- pouco a pouco são segregados aos guetos que a humanidade vem criando ao longo dos séculos para preservação da eugenia moral.
Faço essa declaração de princípios (ou de fins) como medida cautelar perante a posteridade -se é que dita posteridade um dia se preocupará com o modesto escriba deste final de século.
Tudo é possível -diziam as comadres machadianas e digo-o eu, sabendo o que não faço. Leio o artigo de Sérgio Augusto sobre a celeuma provocada pelo livro "Tramp", de Joyce Milton, lançado pela HarperCollins, e tiro minhas conclusões.
A revelação impactante da mais recente pesquisa sobre Charles Chaplin é a de que, apesar da tara heterossexual que tanto o encalacrou com a Justiça norte-americana (processos de sedução, estupro e paternidade), no fundo era um cidadão normal quanto à sexualidade.
Segundo os arquivos do FBI, dirigido na época pelo supernormal Hoover, o criador de Carlitos não passava de uma bicha.
Sabemos que Hoover, além de anticomunista feroz, exibia durante o dia a machidão exigida pela sociedade viciada dos anos 30.
À noite, livre da repressão que o obrigava a um papel tão deplorável, ele assumia sua verdadeira sexualidade e se vestia de mulher, pintava os lábios, usava sapatos altos e desforrava com os seus parceiros a segregação a que estava condenado pelo mau gosto e pela perversa opinião pública que o obrigava a ser ou a parecer um porco machista.
Não vem ao caso discutir a sexualidade alheia. É assunto pessoal que merece respeito -em boa hora a ética politicamente correta proibiu que se mencionasse a opção sexual de cada um dos seres humanos.
Mas não ficava bem à legenda do cinema, veículo mais eficiente do que o Pentágono e a CIA na expansão e consolidação do império norte-americano, manter em seu panteão os deuses que, em público, davam a impressão de serem machistas vulgares.
Gary Cooper, Robert Taylor, Tyrone Power, Cary Grant, Errol Flynn, Clark Gable, Paul Muni, William Holden, os grandes machos que Hollywood produziu nos anos dourados, podiam parecer devastadores quando agarravam aquelas sirigaitas horrorosas que anormais do mundo inteiro cobiçavam com suas mentes e mãos.
Mas à noite, tal como Hoover, assumiam a normalidade e se vestiam de calcinha e sutiã, pintavam lábios e cílios, celebravam as delícias morais e carnais daquele amor que um bardo normal de Stratford upon Avon dizia que não tinha nome.
O último bastião desse Olimpo de machos finalmente caiu. Chaplin também pertencia ao povo eleito, era entendido.
Daí a solidão a que os não-entendidos estão condenados -solidão na qual gostosamente me incluo. Fiel como a torcida do Corinthians a meus códigos genéticos, não pretendo sair dela.
Na costumeira paranóia que persegue os grupos minoritários, sempre ouvia referências a uma certa máfia do Bem que, a exemplo dos cristãos nas catacumbas, preparavam uma sociedade moral mais elevada e de gosto mais apurado.
Como naquela anedota do português cujo relógio às vezes era de ouro e às vezes não era, eu às vezes acreditava nessa máfia moralizadora, às vezes não.
Fumando cigarros e charutos cubanos depois das principais refeições, gostando de óperas e de missas em latim (nas quais não chego a rezar a um Deus em quem não creio), tomando banho todos os dias, escovando os dentes e vestindo-me caretamente, sou um cidadão minoritário, habitante de um submundo, uma espécie em extinção, como os rinocerontes e o mico dourado.
Não importa. Continuarei gostando mesmo é de mulher, sobretudo naquelas horas em que há fome no olhar e força no gesto. E, segundo o poeta, "descem coisas -certas coisas- do luar". Sucede que, ao contrário de outro poeta, não me canso de ser um homem.

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