São Paulo, sexta-feira, 30 de agosto de 1996 |
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"Tieta" busca a beleza do imperfeito
INÁCIO ARAUJO Crítico de Cinema Carlos Diegues costuma dizer que nunca pensa no público ao fazer um filme. No sentido negativo, isso pode ser afirmação de um projeto autoral que pouco se lixa para o que pensa o espectador.No positivo, quer dizer que não se submete ao que, supõe-se previamente, "o público quer ver". É esse segundo sentido que se sobressai em "Tieta": o de um saudável embate com o espectador e seu desejo. "Tieta" é, primeiro, um romance de Jorge Amado que já foi novela de TV. Portanto, uma obra de que os espectadores já criaram, em geral, uma imagem. É, sobretudo, uma história que se presta a uma trama cerrada, à americana, cheia de sobressaltos. Dela, Diegues optou por extrair uma narrativa centrada nos personagens e diluiu a trama (até demais: o excesso de personagens por vezes trava sua evolução). Com isso, a história da garota banida, que volta anos depois a sua cidadezinha nordestina na condição de ricaça, torna-se base de um pensamento do autor. Os personagens do filme são, a rigor, dois: Tieta e Sant'Ana do Agreste. A mulher e a cidade. Mas Tieta -enquanto não se descobrem umas tantas verdades sobre ela- são evocações: o progresso, o dinheiro paulista, os costumes da grande cidade. Já o Agreste é pureza, beleza, imobilidade paradisíaca (mas também pequenez, feiúra, mesquinharia). Tieta e o Agreste mudam delicadamente ao longo da trama. E a maior virtude do filme talvez esteja na maneira como abre esse diálogo entre a cidade grande e o vilarejo e, como num caleidoscópio, faz imagens contraditórias passarem a se cruzar, dialogar, combater. Enfim, a explorar os sentidos desse encontro. Existe, em seguida, um tom. Personagens compostos entre a farsa, a alegoria e o realismo nos lançam na comédia. Ao mesmo tempo, aos poucos, vamos nos dando conta de uma reflexão sobre o Brasil que se desenvolve. Ela desemboca na frase-chave de Tieta. O sentido é mais ou menos este: se eu não sei nem do meu destino, como posso saber o destino de um país inteiro? Em outras palavras: já não existe um sentido dado, como acreditou-se em outros tempos, para onde encaminhar as experiências. Nem certezas prévias. Essa constatação é permeada por vários níveis de imagens (passado, presente, fantasia) e pela oposição entre presença física (o Agreste, a natureza, estado "primitivo") e "off" (São Paulo, cultura, progresso). E aí Diegues acena -auxiliado pela notável direção de arte- com sua visão plástica de um país que concebe belo, exuberante, sensual, diverso. O filme faz essa realidade física -que aspira à perfeição paradisíaca- dialogar com personagens ora mesquinhos, ou tacanhos, ou singelos. Em resumo, humanos e limitados. Chega, com isso, a um filme da tolerância, da convivência, da superação de preconceitos e da possibilidade de elaboração coletiva de experiências distintas. "Tieta" é construído entre o sonho e a realidade, como constatação e elogio da imperfeição, do possível. Em algum nível, é o filme por excelência do real (a moeda, não o banco). Filme: Tieta Produção: Brasil, 1996 Direção: Carlos Diegues Com: Sonia Braga, Marília Pera, Chico Anysio, Cláudia Abreu, Patrícia França Quando: a partir de hoje nos cines Calcenter 3, Gazetinha, Metro 1 e circuito Texto Anterior: Coluna Joyce Pascowitch Próximo Texto: "Enganar é Viver" é dispensável Índice |
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