São Paulo, sábado, 31 de agosto de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Uma vida de calado desespero

RUBENS RICUPERO

Durante a campanha presidencial americana de 1992, ouvi certa vez Ross Perot descrever como iniciara a caminhada que o levaria a acumular imensa fortuna e tentar, pela segunda vez agora, a Presidência do país.
Ex-oficial de Marinha e frustrado vendedor da IBM, entrara ele numa barbearia do Texas para cortar o cabelo.
Como havia alguém à sua frente, começou a folhear as "Seleções do Reader's Digest" para passar o tempo. De repente, deu com a frase que mudaria sua vida. Nela, o grande solitário americano, Thoreau, dizia que "a maioria dos seres humanos leva uma vida de silencioso desespero".
Sem esperar pela vez, decidiu que isso não aconteceria com ele. Levantou-se, foi para a casa e, com o empréstimo de US$ 1.000 da esposa, fundou a empresa de software que o faria bilionário.
Sempre achei que a descrição de Thoreau se ajustaria quase como luva à atitude brasileira em face da injustiça social, se não fosse o adjetivo "silencioso".
A verdade é que fazemos um bocado de barulho em torno do assunto e, ultimamente, tornou-se entre nós consenso universal que nenhum problema merece prioridade maior.
Só não fazemos nada para dar expressão efetiva a essa prioridade teórica ou, como dizem os americanos, "não colocamos o nosso dinheiro no mesmo lugar que a nossa boca".
Ou pior, recentemente, os ladrões dos cofres públicos, não tendo mais Transamazônicas para assaltar, deram para roubar o leite das criancinhas e saquear as verbas sociais.
Tudo isso vem a propósito dos dois artigos que dediquei à tentativa de mudança do sistema norte-americano de proteção social. Nesse terreno, não poderia ser maior a distância que nos separa da realidade dos EUA.
Os americanos abominam a intervenção do Estado na esfera econômica e, salvo em crises como a da Depressão, preservam no domínio privado tudo o que, direta ou indiretamente, tem a ver com a produção.
Em compensação, são ativistas e militantes para exigir a ação do governo, às vezes intrusiva e dura, a fim de corrigir injustiças raciais e promover a mudança social.
Nós, em contraste, herdeiros dos monopólios e companhias de comércio da colônia, nos comprazemos com empresas estatais a vender gasolina, exportar minério de ferro, prestar serviço telefônico e até administrar hotéis.
Reagimos, porém, indignados cada vez que se sugere que o governo faça algo para promover o ingresso de negros nas universidades e carreiras de prestígio do serviço público ou intervir para reduzir a incomensurável taxa de injustiça social.
Se em economia estamos entre os campeões mundiais de um estatismo quase sem qualificações, em matéria social o nosso "laissez-faire" é de dar inveja aos puristas do liberalismo do século 19.
Três exemplos ilustram esse contraste de abordagem entre a tradição histórico-cultural americana e a brasileira: a escravidão, a reforma agrária e a luta contra a discriminação racial.
Em todos esses casos, a solução nos EUA foi radical: a Guerra Civil, o "Homestead Act", que distribuiu as terras públicas aos pequenos e médios agricultores, a Lei dos Direitos Civis e o recurso a cotas e à ação afirmativa para promover a ascensão dos negros e outras minorias.
De nossa parte, sempre escolhemos o adiamento ou as soluções graduais e ineficazes e até nos orgulhamos disso.
Não tivemos, é certo, os 630 mil mortos da Guerra de Secessão, mas retardamos a Abolição por quase um quarto de século e até hoje não se passa um mês sem que se denuncie a presença de trabalho escravo em fazendas.
A Lei de Terras do século 19 e a "reforma" agrária deste século, ou favoreceram a apropriação de terras devolutas por latifundiários ou foram ensaios tímidos que só arranharam a superfície da concentração fundiária.
Quanto à promoção dos negros, mal estamos conscientes do problema e, quando o admitimos, é para esperar que, como com a escravidão, o tempo se encarregue de encontrar uma solução indolor e sem esforço.
O mais grave é que, tendo agido pouco, tarde ou mal no domínio social, possamos agora encontrar uma justificativa para a nossa inação na tendência que hoje se manifesta nos EUA e na Europa no sentido de moderar ou corrigir excessos e distorções da política de bem-estar.
Afinal de contas, nessas outras sociedades muito se fez para superar os horrores da Primeira Revolução Industrial e boa parte do que se realizou teve êxito. Enquanto isso, no Brasil...
Por conseguinte, antes que se comece a querer importar exemplos irrelevantes para o atual estágio dos nossos atrasos, é importante afirmar o papel insubstituível do Estado brasileiro como agente catalisador de uma mudança social que sofre de um retardamento histórico de um século a menos em relação ao Ocidente.
Para isso, é preciso que o governo se ponha a serviço das maiorias, construindo uma aliança de todos os que aceitam a justiça social como o centro definidor das opções políticas.
Se, na época de JK e nos anos 70, predominou a preocupação com o desenvolvimento econômico e se, findo o período militar, a liberdade e a democracia deveriam passar antes de tudo, agora a prioridade unificadora tem de ser a justiça, ainda que tardia.
Só assim poderemos nos livrar dessa atitude de silencioso desespero diante de um problema que pode e deve encontrar solução, como o provaram ou vêm provando inúmeros países no passado ou no presente.

Texto Anterior: Olho no investimento; Evitando influências; Outra leitura; Sem delongas; Na promessa; Acerto de dívidas; Nova música; Aprendizagem industrial; Atualização profissional; Dinheiro asiático; Fechando a conta; Alívio imediato; Sem capacidade; Lados da moeda; Riscos de déficit; Sinais de escassez
Próximo Texto: Seriedade para o Proálcool
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.