São Paulo, domingo, 1 de setembro de 1996
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A segunda abertura

ROBERTO CAMPOS

"No lugar do antigo isolamento e da autarquia das regiões e nações, se estabelece um intercâmbio universal, uma interdependência universal das nações."
Karl Marx, no "Manifesto Comunista" de 1848
A atual globalização do mercado não é um "mito da direita" nem um modismo neoliberal. Trata-se da "segunda abertura", como o faz notar em artigos no "Jornal da Tarde" o embaixador Meira Penna, um liberal que conhece Marx mais profundamente que qualquer dos comparsas locais.
A primeira abertura ocorreu em meado do século passado. Foi saudada por Karl Marx no "Manifesto Comunista" de 1848 como uma contribuição progressista da burguesia. Diz Marx textualmente: "Com grande mágoa dos 'reacionários', ela (a burguesia) puxou de sob os pés da indústria a base nacional onde se sustentava. As antigas indústrias nacionais foram destruídas. São suplantadas por outras indústrias cuja introdução se converte em questão vital para todas as nações civilizadas".
Tragicamente, o socialismo real, quando implantado por Lênin em 1917, renunciou às vantagens da globalização. Marchou para a autarquia, que é uma receita de ineficiência, e acabou implodindo em 1989. A globalização passou a ser uma doutrina capitalista, tornando-se irresistível e irreversível na última década, a partir da revolução telemática e do colapso do socialismo.
Marxistas e socialistas estão hoje sofrendo uma cruel depreciação de seus instrumentos de análise sociológica. "Quo vadimus?" -é a pergunta que se fazem. Descrevendo a perplexidade dos socialistas europeus, Robert Heilbroner diz que suspiram por uma destinação indefinida que se poderia chamar de "não-socialismo". Idealmente, o não-socialismo animal -ainda por ser "engenheirado"- possuiria 1) a vitalidade do capitalismo, sem uma classe de poderosos capitalistas; 2) um substancial grau de intervenção governamental sem um corpo de burocratas; e 3) uma bolsa de valores sem um cassino...
Experimentará o capitalismo um prolongado surto de crescimento comparável à "belle époque" do século passado e começo deste século? Dois economistas do MIT transmitem visões diferentes. Rudiger Dornbusch, não raro catastrofista, prevê grandes oportunidades de desenvolvimento mundial numa economia aberta e competitiva. Lester Thurow, conquanto descarte a possibilidade de um colapso capitalista, adverte contra o perigo de "estagnação", se o sistema não se flexibilizar suficientemente para absorver os choques das transformações tecnológicas.
Dornbusch aponta cinco motivos de otimismo:
- o dramático avanço tecnológico;
- o fim do comunismo;
- o fim da excessiva regulamentação estatal e das estruturas corporativistas do "welfare state";
- o fim da inflação nos principais países industrializados;
- o fim das grandes guerras, pois as velhas potências estão cansadas de lutar, e as novas não estão prontas para isso.
Os riscos, todos superáveis, seriam: (1) tropeços no Japão, que está perdendo dinamismo, e na Europa, obcecada com o rigorismo antiinflacionário do Tratado de Maastricht; (2) escassez de capital (com alta da taxa de juros); e (3) recuos na abertura competitiva, em virtude dos deslocamentos criados nas velhas indústrias.
Uma indagação paralela à do futuro do capitalismo, e igualmente interessante, é se o extraordinário dinamismo dos tigres asiáticos e da China costeira poderá se prolongar por muito mais tempo.
Como é sabido, o fenomenal crescimento asiático comporta duas leituras diferentes. Para os dirigistas, esse progresso se deve a burocratas iluminados que planejaram "indústrias vencedoras", para nelas concentrar esforços. Para os liberais, as receitas do sucesso foram a austeridade fiscal, a alta taxa de poupança e a preocupação com a competitividade exportadora.
Uma visão bastante mais cética do dinamismo asiático foi recentemente apresentada por Paul Krugman, professor de Stanford. O crescimento asiático teria sido devido mais à aplicação intensiva de insumos -capital, equipamentos e mão-de-obra- do que à eficiência na utilização desses insumos.
A aplicação intensa de insumos pode gerar ondas de crescimento. Mas são temporárias, porque esses insumos não são mobilizáveis em escala constante ou crescente. Somente a maior eficiência no seu uso -a saber, a produção por unidade de insumo- garantiria a continuidade de alto crescimento. E há escassa evidência de que os asiáticos tenham melhorado substancialmente sua eficácia no uso de insumos.
O grau de eficácia, aliás, nada tem a ver com o dirigismo governamental. Hong Kong e Cingapura são ambos milagres de crescimento, aquela num clima superliberal, e esta regida por tecnocratas iluminados. Hong Kong conseguiu um desenvolvimento sustentado igual ou superior ao de Cingapura, com metade da taxa de investimento. O mercado foi mais eficiente do que os planejadores.
Como exemplos cautelares da necessidade de se distinguir a "mobilização" de insumos, da "eficiência" em seu uso, Krugman cita a falsa euforia de Khruschov com o crescimento soviético no fim dos anos 50 e começo dos 60. Orgulhoso com a tecnologia do Sputnik, aquele líder pretendia primeiro ultrapassar o capitalismo e, depois, enterrá-lo... Sacrificando os consumidores, os soviéticos combinavam altíssimo investimento com grotesco desperdício. O recente esmorecimento da economia japonesa (esta bem mais eficiente), cujo dinamismo parecia inesgotável, é outro exemplo. Os Estados Unidos, com uma taxa muito inferior de poupança e investimento, porém maior eficiência no uso de insumos, recuperaram o dinamismo e a competitividade, que pareciam perdidos para o Japão.
A altíssima taxa de crescimento da China costeira, que passou da estagnação socialista a um capitalismo selvagem, também não se sustentará indefinidamente. Os expatriados chineses, que forneceram o grosso dos capitais, começam a temer a concentração de riscos. E o reservatório de mão-de-obra barata, desprovida de garantias trabalhistas, não é inesgotável. As deficiências da infra-estrutura garantem grande desperdício de insumos.
Essa visão relativista do mistério do desenvolvimento é de escasso consolo para nós. Não fomos eficientes nem na mobilização de insumos nem em sua utilização. Através de confiscos periódicos, desencorajamos um vital insumo -a poupança privada. Até recentemente, rejeitávamos capital estrangeiro para a infra-estrutura. E investimentos pouco em educação básica. O estatismo e as reservas de mercado garantiram alto grau de ineficiência na utilização dos insumos.
A melhor maneira de promover a eficiência no uso de recursos é a concorrência interna e externa. Donde ser a oposição à abertura econômica e à globalização -em nome do combate ao neoliberalismo- uma secreção de cabeças suicidas. Ou talvez, o perfume de flores assassinas que mesmerizam mosquitos ideológicos.

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