São Paulo, domingo, 1 de setembro de 1996
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Surrealismo tributário

OSIRIS LOPES FILHO

Às vezes, para se entender o Brasil, principalmente as manobras da casta dirigente, tem-se que considerar a produção volumosa de peraltices, visando a impregnar o nosso ambiente de surrealismo.
A aprovação na Câmara do projeto Kandir de lei complementar sobre o ICMS constitui mais uma decisiva contribuição ao surrealismo nacional.
O projeto original tinha tantas impropriedades jurídicas e inconstitucionalidades que o substitutivo representou um trabalho misto de gari e de maquilador. Retiraram-se as impurezas e embelezaram-se as formas, mas o substrato continuou o mesmo.
Apesar da ordem unida em que foi aprovado, não se respeitou uma característica típica das organizações castrenses: a hierarquia.
O projeto de lei complementar está a reformar a Constituição em muitos pontos que foram julgados inadequados. Altera-se a Constituição, por lei complementar, invertendo-se a hierarquia das leis. Geraldo Ataliba tinha razão. Para o Executivo, o cume da estrutura normativa é a instrução normativa ou a portaria. A Constituição fica lá embaixo. Agora, a Câmara deu sua contribuição à iconoclastia da hierarquia das leis.
Inova-se a conceituação de mercadoria, como tal entendida pelo Supremo Tribunal Federal, que considerou que mercadoria é o bem adquirido para revenda. Prevê-se a incidência do ICMS sobre importações realizadas para consumo próprio da pessoa física importadora. O projeto almeja descaracterizar o conteúdo técnico-jurídico da mercadoria, ao dispor no seu art. 2º, parágrafo 2º que "a caracterização do fato gerador independe da natureza jurídica da operação que o constitua".
Desejoso de evitar evasões, mas de forma canhestra, considera contribuinte a pessoa física que realize com habitualidade operações de circulação de mercadorias. O namorado que habitualmente inunda sua amada com flores poderá ser considerado contribuinte do ICMS.
Um dos exageros cometidos pelo projeto é considerar também contribuinte "a pessoa física que mesmo sem habitualidade adquira lubrificantes derivados de petróleo oriundos de outro Estado, quando não destinados à comercialização". O incauto cidadão que adquirir, morando no Rio, uma lata de graxa, por encomenda feita a estabelecimento em São Paulo, vai virar contribuinte do ICMS.
A pressa é má conselheira. Pior ainda, quando agravada pela vontade de servir a qualquer custo aos poderosos.

Osiris de Azevedo Lopes Filho, 56, advogado, é professor de Direito Tributário e Financeiro da Universidade de Brasília e ex-secretário da Receita Federal.

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