São Paulo, domingo, 1 de setembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A ansiedade da metrópole contemporânea

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

A metrópole contemporânea, caótica, saturada pelo trânsito, pela avalanche midiática, pelo ritmo insano das construções e demolições, desafia seus habitantes. Como reafirmar o sublime, como expressar o sagrado, como representar aquilo que é inexprimível, que vem da alma, em um universo tão fluído, efêmero, impessoal e superficial?
Nelson Brissac Peixoto se debruça sobre a ansiedade contemporânea de reencantamento do mundo. E o faz explorando sua fascinação pela relação entre o rosto e a paisagem, o detalhe e o plano grande, temática cara à arte moderna, mas que precisa ser reajustada para dar conta da situação de opacidade da paisagem e de hipervisibilidade do rosto na vida contemporânea.
"Paisagens Urbanas", título do livro e do vídeo a serem lançados pelo autor no dia 4, no Museu Brasileiro de Escultura (apenas para convidados), trabalha o olhar sobre a cidade de diversos artistas, escultores, arquitetos, artistas plásticos, vídeo-makers.
Segundo o autor, "o objetivo tanto do livro quanto do vídeo é mostrar que podemos ter uma leitura que articule diferentes artistas aparentemente desconexos. E só na metrópole contemporânea esse diálogo pode aflorar". Aqui, "a cidade aparece como pretexto para discutir a relação com a arte, as implicações da superação do objeto pictórico".
Refletir sobre o urbano significou para Brissac uma aventura por meio da diversidade de suportes que caracteriza a própria cidade. É assim que o filósofo e professor do departamento de comunicação e semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) se aventura no terreno de uma crítica de arte que não parte da obra individual de cada artista, mas ao contrário procura analisar as relações destas obras com o espaço e o fluxo de informações que lhe são contemporâneos.
E o faz por meio da escrita, no livro belamente composto e ilustrado, do vídeo, editado com extremo cuidado, sem narração em off -o que facilita o diálogo entre artistas, teóricos, obras e paisagens-, e da intervenção na cidade, na idealização e direção do "Arte/Cidade".
Ironicamente, o leitor pode se defrontar com uma certa opacidade no próprio texto do autor. Ao contrário do vídeo, centrado principalmente em São Paulo, mas também no Rio e em Congonhas do Campo, no livro, Brissac trata da arte na cidade de maneira abstrata, dialogando com uma gama bastante ampla da tradição ocidental. Informado por problemáticas filosóficas e estéticas, expostas com primor no vídeo pelos professores da USP Davi Arrigucci e Olgária Mattos, é talvez no vídeo e como idealizador e diretor do projeto "Arte/Cidade" que Brissac realize de maneira mais contundente seu projeto de reflexão-intervenção urbana.
"A cidade é um enigma a ser decifrado", afirma Davi Arrigucci na introdução do vídeo. Ou ainda, na caracterização de Olgária Mattos, a cidade é superficial, representa a opção racionalista, o desencantamento do mundo, o triunfo da linha reta. Essa cidade oculta, no entanto, uma outra, subterrânea, presente na memória, que resiste encantada e labiríntica. É esta última que o trabalho de Brissac procura fazer aflorar.
E o faz por exemplo no tratamento do trabalho de Paulo Mendes da Rocha. Ao dissertar sobre o projeto do Museu da Escultura, o arquiteto contribui para a divagação do filósofo: "Imaginamos, portanto, fazer essa lage como uma pedra no céu".
Apesar de concluído somente agora, o projeto "Paisagens Urbanas" é de 1990, portanto anterior ao "Arte/Cidade". A pesquisa já realizada facilitou um trabalho de curadoria que foi se aprimorando nas diversas edições do projeto.
O filósofo propõe a um grupo de artistas selecionados a intervenção em uma determinada situação espacial: o Matadouro Municipal, o vale do Anhangabaú -ambos de 1994 com produção da Secretaria Estadual de Cultura- e o Ramal Ferroviário -encampado pela iniciativa privada e previsto para abril de 1997.
"Toda tensão criativa nasce desse confronto e provoca soluções extremamente inventivas que têm a ver com o trabalho individual de cada artista", diz Brissac. Assim artistas plásticos acostumados ao suporte da tela, como Paulo Pasta, experimentam a linguagem das instalações. E suas intervenções reverberam em outras. O "Detetor de Ausências" de Rubens Mano, instalado no vale do Anhangabaú, já se transforma em outra coisa quando representado em foto, publicada no livro.
"Paisagens Urbanas" encontrou inúmeras dificuldades de realização, a começar pela morte do fotógrafo Chico Botelho, a quem o vídeo é dedicado. O projeto "Arte/Cidade" igualmente se defronta com uma infinidade de problemas técnicos e burocráticos que exigem longas negociações para se estabelecer por exemplo a grade horária e a adequação dos ramais ferroviários no trecho de 5 km que liga a estação da Luz às antigas indústrias Matarazzo. Neste trecho, cerca de 30 artistas vão realizar obras que serão visitadas de trem.
Esses obstáculos de certa forma fazem parte da empreitada. Imprimem a ela uma demora e um grau de dificuldade que correspondem ao caráter arredio da cidade. Em contato com os problemas concretos e comezinhos que fazem o cotidiano do espaço urbano, o filósofo se defronta com a materialidade do mundo. E expande sua atividade acadêmica para a cidade. O trabalho de Brissac sugere que a produção de idéias pode resultar do entrechoque de atividades em linguagens diversas.

Texto Anterior: A esfinge musical da Rússia
Próximo Texto: Vídeo tem três episódios
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.