São Paulo, domingo, 1 de setembro de 1996
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A esfinge musical da Rússia

AUGUSTO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

A abertura progressiva do regime soviético pós-Stálin e o final desmoronamento do totalitarismo comunista trouxeram à tona a obra de diversos compositores que haviam sido marginalizados pelos burocratas do "realismo socialista". Nomes como os dos russos Denisov, Schnitke, Gubaidulina, ou o do estoniano Arvo Pãrt, todos nascidos em torno dos anos 30, são hoje bastante conhecidos no Ocidente e os catálogos discográficos de música erudita estão repletos de suas criações, que, além do seu valor intrínseco, constituem testemunho eloquente da força irreprimível e universal da música contemporânea -a música do nosso tempo, queiram ou não os preguiçosos auditivos.
Desconhecida até há pouco, uma nova personalidade vem de acrescentar-se à constelação emergente de artistas silenciados pela ditadura. Trata-se de uma compositora de nome arrevesado, Galina Ivanova Ustvólskaia, cuja obra começou a ser divulgada em 1993. De geração bem precedente à dos seus colegas mais difundidos, anterior mesmo à dos criadores da "música nova" dos anos 50 -Boulez, Stockhausen, Nono, Berio-, ela nasceu em São Petersburgo, em 17 de junho de 1919. Como se não bastasse a redescoberta, na década de 80, da obra magna de Giacinto Scelsi e de Conlon Nancarrow, criadores originalíssimos, que refogem às classificações, a recente revelação das composições de Ustvólskaia constitui mais um "achado musical" de extraordinária significação, uma verdadeira bomba informativa de efeito retardado, capaz de infundir inédita coloração e vigor ao universo da música de invenção, a mais desafiadora da nossa época, "música para fortalecer os músculos do ouvido, os músculos da mente, e talvez os músculos da Alma" -como diria Charles Ives.
Nem é negligenciável a circunstância de ser ela uma mulher, quando se sabe que, embora muitas mulheres se tenham notabilizado como grandes intérpretes, poucas se destacaram como compositoras. E quando se considera que os músicos de tendências modernistas que permaneceram na URSS foram todos eles, de Mossolov a Shostakóvitch, obrigados a enquadrar-se em linhas tradicionais e a renunciar à aventura da experimentação, é ainda mais surpreendente constatar que precisamente uma mulher haja tido a coragem de recusar-se a quaisquer concessões para manter a integridade de uma obra que afronta todos os dogmas do "realismo socialista", de forma tão radical e transgressora. Naturalmente, o preço que pagou foi o da marginalidade e o do anonimato, que só agora começam a ser rompidos.
Inútil procurar seu nome nos dicionários musicais ou nos livros sobre música moderna. Não tem registro. O que sei sobre Ustvólskaia está nos folhetos dos quatro CDs que consegui, todos editados nesta década. Os dois que trouxe comigo de uma recente viagem a Amsterdã -um presente de Jan Wolff, diretor artístico da casa de espetáculos De Ijsbreker, prestigioso centro de música contemporânea e experimental na Holanda- e que me revelaram a sua música: o primeiro contendo "Trio para Violino, Clarineta e Piano" (1949), "Dueto para Violino e Piano" (1964) e "Sonata nº 5 em 10 Movimentos" (1986), lançado sob a rubrica da Hat Hut Records, em 1993; o segundo, reunindo as "Composições 1, 2 e 3" (1970-75), sob o selo da Philips, de 1995. Ambos interpretados pelo Schoenberg Ensemble, dirigido pelo notável pianista, regente e musicólogo holandês Reinbert de Leeuw. Quanto aos demais, um deles lançado pela Conifer Classics, em 1994, contendo "Octeto" (1950), a "Composição 3" (1974-75) e a "Sinfonia nº 5 (Amém)" (1990), ao lado do "Quinteto para Piano em Sol Menor, Op. 57 (1940) de Shostakóvitch; o outro, pela Koch International Classics, no ano passado, com o "Grande Dueto para Violoncelo e Piano" (1959), junto a duas composições de Sofia Gubaidulina, "In Croce, para Violoncelo e Órgão" (1979) e "10 Prelúdios" (1974). Se as belas criações de Gubaidulina, com sua desabrida exploração timbrística, se identificam plenamente com as da sua antecessora, o mesmo não se pode dizer do bem-comportado quinteto de Shostakóvitch, que, segundo informa Eric Rosberry, em sua monografia sobre o compositor, lhe valeu um comentário amistoso do "Pravda" ("liricamente lúcido, humano e simples") e um Prêmio Stálin de 100 mil rublos... São pólos opostos.
Ustvólskaia estudou, de 1937 a 1939, no conservatório da sua cidade natal, tendo interrompido o curso durante a guerra para servir num hospital, e concluiu seus estudos musicais no Conservatório Rimski-Korsakov, onde foi aluna de Shostakóvitch, até 1947. Afirma-se que este a defendeu das acusações de "modernismo" na União dos Compositores Soviéticos e, tendo tido alguma influência sobre as suas composições de juventude, acabou influenciado por ela, no fim da vida, chegando a submeter suas próprias obras ao julgamento da compositora.
Poucos terão utilizado a dissonância com a violência e a diretidade com que Ustvólskaia a usa. Embora haja óbvios antecedentes na própria tradição moderna russa, em Stravinski por certo, mas também em manifestações quase-futuristas de autores da geração que a precedeu imediatamente, como Prokofiev, Mossolov e Popov, as mais ousadas antecipações parecem ensombrecer perto das compactas explosões sísmicas dos desacordes da compositora. Desde os exemplos mais antigos de suas obras, em torno dos anos 50, o "Trio para Violino, Clarineta e Piano", o "Octeto", "O Grande Dueto para Violoncelo e Piano", sua personalidade se desgarra e se singulariza pelo ascetismo e radicalidade das intervenções sonoras, com um matiz percussivo obsedante, que levou, por sinal, Elmer Schoenberger a denominá-la "a dama com o martelo". Complementam a dissonância cacofônica de suas obras uma extrema concisão, que se condensa em blocos sumários de encadeamentos de sons, atravessados de silêncios, e a formação contrastante, conflituosa, do instrumental. Quando a reunião dos instrumentos não é inusitada, como no "Dueto para Violino e Piano", os registros contrastam agressivamente, graves contra agudos, massas sonoras contra sons isolados, clusters contra pontilhismos, fortíssimos contra pianíssimos, glissandos diante de staccatos, ataques versus silêncios, numa tensão rítmica permanente. Noutras criações os estranhos grupos instrumentais acoplados já são, por si sós, expressões de conflito. É o caso da "Composição 1 - Dona nobis Pacem", de 1970-71 (flautim, tuba e piano), da "Composição 2 - Dies Irae", de 1972-73 (8 contrabaixos, caixa de 43 x 43 cm e piano) e da "Composição 3 - Beneditus qui Venit", de 1974-75 (4 flautas, 4 fagotes e piano). Mas a timbrística contrastante é explorada da maneira mais radical possível, agravada por ataques bruscos dos instrumentos, cachos de sons em regiões incomuns vazados por sopros e pianos pianíssimos. A "Sonata nº 5 em 10 Movimentos", com sua dinâmica exaltada pelo martelamento de células sonoras obsessivas, concebida quando Ustvólskaia já chegava aos 67 anos, mostra que a idade não lhe atenuou a rebeldia. E se em criação ainda mais próxima, a "Sinfonia nº 5", de 1990, o Padre Nosso recitado enfaticamente pelo narrador parece contradizer a austeridade da obra -a menos que se trate de "uma escolha irônica" de Ustvólskaia, como sugere Louis Blois, ou de uma interpretação extrovertida (contra a expressa recomendação da compositora: "Com emoção interior")- a dureza e a secura do percussionismo orquestral confirmam ainda as propostas anteriores, mantendo basicamente a sua coerência.
O elementarismo formal e a agressividade ruidística de sua obra levaram um outro estudioso, Theo Hirsbrunner, a invocar Stravinski e Maliévitch: "Como Stravinski em 'A Sagração da Primavera', a compositora retorna aos tempos pré-históricos. Os instrumentos são obviamente modernos e já têm sido usados das mais diversas formas na música européia. Mas aqui tem-se a impressão de que foram tomados por seres selvagens que impõem a sua natureza enlouquecida sobre eles, não para menoscabar uma audiência culta, mas para enviar gritos de socorro nascidos da aflição. Nesse sentido, a música se torna um sinal: ela não mais gesticula, mas se petrifica em alguns poucos símbolos esparsos, tais como os que podemos observar nos quadros de Kasimir Maliévitch. Ustvólskaia está escrevendo música suprematista muito depois dos pintores de quadros suprematistas, que se tornaram peças de destaque nos museus do mundo ocidental, mas foram banidos na União Soviética. Durante os anos 70, ninguém em Leningrado pensava em glasnost e perestroika, mas em suas composições Ustvólskaia ligou-se à tradição da vanguarda russa: com intransigência reconsiderou "ex novo" os elementos musicais, deixando-os no seu estado primigênio, ainda não tocado pela civilização. Para Alain Poirier sua música lembra "a obra eruptiva de Varèse", parecendo num primeiro momento "totalmente desvinculada de qualquer tradição, ainda que sua essência e sua justificativa estejam enraizadas numa herança modal consideravelmente colorida e enriquecida por poderosos efeitos de ressonância". Louis Blois evoca a imagem de personalidades independentes como Giacinto Scelsi, que lhe parecem afins em espírito, senão em estilo.
A mim, sua "arte de recusas" me faz pensar em duas outras grandes mulheres -na revolução silenciosa e solitária dos poemas de Emily Dickinson, que ficaram inéditos durante a sua vida, e, dentro da própria União Soviética, na trágica insubordinação dessa descendente espiritual de Emily, a poeta-suicida Marina Tsvietáieva, uma das muitas vítimas do stalinismo. Ustvólskaia é -quem sabe- a Tsvietáieva pós-suprematista da música moderna.
Ela própria não nos ajuda a desvendar o enigma de sua obra: "É muito difícil falar sobre a própria música. Minha habilidade para compor infelizmente não é igualada por minha habilidade para escrever sobre minhas composições. Além disso, há quem diga que uma exclui a outra. Peço a todos os que realmente amam a minha música que renunciem a sua análise teórica".
Refletindo, não obstante, sobre as suas "Composições 1 a 3", Alain Poirier, guiado pelos títulos que a autora lhes deu, julga ver aí uma "missa em miniatura", que passaria em arco do apelo à paz, ao "dia da ira" e à expectativa do Redentor. Se assim for, trata-se também, ao que parece, de uma alegoria da penitência e da esperança do povo soviético. Mas é tal a sua explosividade sonora, que eu me pergunto se essas peças não teriam algo de uma "missa negra", como de certa forma aquela "Sonata da Chiesa", que Virgil Thomson produziu em 1926, obra notável na opinião de John Cage, compactando culto negro protestante americano, ritmos de tango sincopado e uma "fuga para acabar com as fugas" (expressão de Cage) num concerto dissonante em que trocam de papel cinco instrumentos disparatados -uma clarineta em mi bemol, um trumpete em ré, uma viola, uma trompa em fá e um trombone. Só que Ustvólskaia vai ainda mais longe, no trovejante "rumoratório" (para aludir ao "roaratorio" cageano) da sua minimissa laica. A começar pelo inusitado solo de tuba que inicia as células fugais da "Composição 1 - Dona nobis Pacem", entrecortada de gemidos do flautim e do piano em sinistro acoplamento sonoro. Aglomerando-se às vezes em quase-canons burlescos, essas figuras martelantes se chocam, durante todo o desenvolvimento da fuga com imprevisíveis ruminações surdinantes do piano, do flautim e da tuba, para mais adiante serem revisitados por explosões percussivas das caixas e "clusters" contrabaixísticos ("Composição 2 - "Dies Irae"), até esmorecerem nos sopros e pianíssimos agonizantes da "Composição 3 - "Beneditus qui Venit", que Louis Blis avizinha da "Pergunta sem Resposta" de Charles Ives. Sem querer semantizar o insemantizável musical, não há como evitar a sensação de perceber nessa conflagração sonora um patos de tragédia pessoal e coletiva. De um lado, a truculência da tuba e do flautim em registros extremos, a empostação bufo-marcial das caixas, as intrusões do piano e dos contrabaixos em massas opressivas. De outro, o estertorar agônico do piano e dos demais instrumentos em humílimas intervenções na fímbria do silêncio. "As minhas obras não são religiosas no sentido literal, mas estão cheias de espírito religioso e, no meu modo de sentir, soariam melhor no interior de uma igreja, sem introduções e análises de caráter acadêmico. Nas salas de concerto, ou seja, em ambiente 'profano', resultariam diferentes" -afirma, sempre enigmática, a compositora.
Não é possível ainda definir com precisão o espaço da música russa em nosso século, sacrificada como o foi pelo interdito stalinista. Entre Scriabin e Stravinski há um vazio que só será preenchido quando a obra teórica e prática de Obuhov (1892-1950) e Wyschniegradski (1893-1980), expatriados russos, pioneiros da música atonal e microtonal, puder ser melhor conhecida, assim como a dos ultracromatistas Roslavetz (1881-1944) e Lourié (1893-1966). Mais significativa do que parecia é a música da fase não policiada dos "modernistas" como Mossolov (1900-1973) e Popov (1904-1972) -o CD "Music of the First October Years", do selo Olympia, editado em 1988, nos dá alguma idéia dessa produção, potencialmente rica, como o comprovam a "Sinfonia de Câmara em Dó Maior", op.2 (1927) de Popov, os "4 Anúncios de Jornal" e os "3 Esboços Infantis", op.18 (1926) de Mossolov, um compositor que chegou a interessar a Giacinto Scelsi quando foi divulgada na Europa a "machine music" futurista de sua obra "Zavód" (Fábrica), extraída do balé "Stal" (Aço), de 1928. Três anos depois, Pierre Monteux dirigiria, em Paris, o poema sinfônico "Rotative", para três pianos, metais e percussão, de Scelsi, na mesma linha de perquirições. Algumas obras pianísticas dos anos 20 desse compositor russo, que podem ser ouvidas no CD "Mossolov - Works for Piano" (editado pela gravadora Le Chant du Monde, em 1991), mostram-no laborando num instigante enclave entre o cromatismo pós-scriabiniano e o brutalismo ruidista da música-da-máquina. Como se vê, são informações recentes sobre um período por muito tempo rasurado da história musical do nosso século pela censura stalinista. Ustvólskaia não há de ter sido indiferente a essas afinidades com a marginalidade vanguardista russa.
Se as aproximações nos auxiliam, suprindo a reticência da compositora, a compreender e situar, no contexto de sua pátria e da música contemporânea, o significado da esfíngica presença de Ustvólskaia -ainda viva, com 77 anos, a julgar pelas notícias dos CDs-, é preciso que se diga que, de fato, e apesar de todos os precedentes, em última análise sua obra não se parece com nada. E aí reside a sua grandeza. Sem apelações, sem chorar, sem cantar, sem contar, em completo isolamento, ela responde com sua música insólita pelo que há de mais íntegro, mais ético e mais insubornável na dignidade espiritual do artista e do ser humano. Conseguiu ser ela mesma, contra todas as pressões e opressões. Ao mesmo tempo, talvez pela própria solidão periférica de seu trabalho em relação aos centros de gravitação europeus, logrou criar uma obra original, à margem de todas as originalidades da música do seu tempo. Extraiu branco do branco. Silêncio do silêncio. Um silêncio que grita. Grito tão alto e de tanta intensidade que talvez não seja escutado pelos ouvidos anestesiados da maioria silenciosa, mas que, ao menos, já não pode ser silenciado.

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