São Paulo, domingo, 1 de setembro de 1996
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A busca do absoluto

TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Artaud ainda é força viva na cultura graças, em larga medida, ao bilhete de ingresso na contemporaneidade que lhe foi garantido pela revolta dos jovens no final dos anos 60. E, se o nome de Artaud era erguido no meio das bandeiras conflitantes dos jovens nas ruas, não foi apenas pelo imaginário radical de seu teatro ou pela força perturbadora de sua poesia.
É que seus textos traziam embutida uma teoria da cultura cuja cristalização ocorria exatamente naquele maio de 68. Não, na verdade, uma "teoria" da cultura, termo que abominava, mas uma posição diante da cultura. Uma posição sem rótulo à época e que agora é possível compreender como pós-moderna ou, se preferível, pós-iluminista. Um pós-iluminismo ensaiado 30 anos antes da consagração desse tema e que emergia, ainda sem esse nome, na versão anarquista dos Cohn-Bendit exigindo uma revolução capaz de mudar o homem e não apenas que mudasse, da direita para a esquerda, o lugar dos que mandam no homem.
Essa posição estava em sua poesia e nas motivações para o "Teatro da Crueldade", nos anos 20 e início dos 30, antes de surgir, sinteticamente, em seus textos politizados (1). Se atravessou em silêncio as décadas de 30 a 60, foi por contestar o senso comum burguês e humanista presente, em doses variadas, nas idéias da direita, que Artaud escandaliza, e de esquerda, que Artaud irrita. O pós-iluminismo original de Artaud manifesta-se, nítido, em pelo menos três pontos. Primeiro, no repúdio à concepção racionalista do mundo que, escreveu ele (2), dominara a consciência européia por 400 anos.
Para Artaud, o desespero existencial da juventude resultava na aposta excessiva numa razão que nada conseguia além de provocar no mundo uma "anarquia material" que nem mesmo o marxismo, produto do mesmo imaginário europeu vicioso, podia reverter. Esse racionalismo inútil, cortejador da morte, gerava o pesadelo final: a consciência separada, emblema da cisão entre teoria e vida, vida e arte, arte e corpo, corpo e carne. Uma anterior cultura unitária se fragmentara e contra essa dispersão nada podiam nem o surrealismo nem o marxismo, dos quais Artaud se aproximara e afastara por vê-los ultrapassados pelos fatos.
O segundo ponto do pós-modernismo antecipado por Artaud é o da constatação do império do simulacro na vida contemporânea. Para Artaud, para os jovens de 68 como para os ensaístas dos anos 70 e 80, todas as experiências de vida dissimulam o real. Artaud via a cabeça do europeu, à época, como uma caverna em que nadavam simulacros exangues que a Europa chamava de pensamentos.
Artaud não queria isso: buscara o real, angustiadamente. Por meio da poesia ou da droga. Não suportava a realidade banal dos "estados normais" da vida comum (deitar-se, levantar-se, comer, falar) e da vida cultural congelada (na literatura, na poesia, na ciência, na moral, na filosofia), geradores de uma realidade esvaziada de sentidos. Mas tampouco suportava ou procurava, mesmo convivendo com as drogas, os estados anormais, antinaturais ou extranaturais. O que buscava era "o real com seu peso verdadeiro", sem as perdas e exageros produzidos pela cultura falsa.
O terceiro elo entre Artaud e os pós-modernos é esse repúdio a uma cultura esgotada, institucionalizada. Dessa cultura Artaud queria escapar, como faz ao partir para o México em busca de outra droga, o peyotl, e de uma outra cultura que lhe pareciam -a seus olhos de europeu...- mais vivas.
Via toda a cultura européia como um cemitério, aceitando aqui a tese do surrealismo, ou como uma comédia de idolatrias, como acontecia sob o marxismo. Cultura não é, para Artaud -outra vez provocando os bem-pensantes- construir escolas, difundir livros, preservar a arte em museus. Cultura é protesto, arte interessada (3) -interessada em destruir a arte para tocar na vida. Cultura é a vida, aquilo que o conhecimento abstrato não consegue eliminar das pessoas. E vida era o que Artaud via os jovens da época perseguindo ansiosos. Como em 68. A essa vida, a essa fome de estar junto e experimentar a existência diretamente, os pós-modernos dão o nome de socialidade, por contraste com o social novecentista corporificador de tudo aquilo que Artaud rejeitava. A socialidade, vida sem teoria, era o que Artaud buscava. Como os jovens de 68.
Contrariamente ao que se costuma pensar, essa juventude saturada de racionalismos e culturas formalizadas não andava atrás de misticismos. Nem Artaud. Não buscavam o místico porque queriam acabar com todas as alucinações do espírito, induzidas culturalmente, e encontrar a verdade humana sem disfarces. Nem o formalismo racional, nem o desvario místico. É interessante notar que enquanto a contracultura européia de inspiração francesa optava pelo anti-racionalista e antimístico Artaud, sua contrapartida americana desfraldava a bandeira, esta sim largamente embebida em misticismo, de William Blake.
A bíblia contracultural americana escrita por T. Roszak, "Para uma Contracultura", abria citando Blake e continha todo um capítulo, "Olhos de Carne, Olhos de Fogo", escrito sob a invocação do poeta inglês -um capítulo contra a tecnocracia e em que se fala dos céus e dos xamãs em defesa de novos olhos capazes de ver o mundo não como banalidade ou cientificidade, mas como ele "realmente é", resplandecente, "para além de tudo que se imagine".
A diferença entre os dois poetas não é pequena: enquanto a carne de Blake é uma transfiguração alegórica (embora às vezes algo bem material, como disseram alguns de seus vizinhos mais voyeurs), a carne de Artaud surgia-lhe como um drama inscrito em cada fibra do corpo e da mente.
Compreende-se, assim, o ressurgimento de Artaud e o espaço que lhe foi aberto desde os anos 60. Mas, se não é difícil ver como a reflexão pós-60 o retoma -sem citá-lo: ele continua incômodo-, não é fácil distinguir elos entre Artaud e a cultura atual. Ligando Artaud, os jovens de sua época e os de 68 havia um traço forte: a procura do absoluto.
A década de 80, e a de 90 mais ainda, é o tempo do contrário disso, o tempo do relativismo -não pior, não melhor que o absolutismo artaudiano, apenas outra coisa. Nem o real é um absoluto, nem a cultura, nem a vida. Aqui, o pós-modernismo rompe com Artaud. É outra posição. E agora, como nos anos 30 e 40, sua voz soa de novo estranha, encontrando eco apenas em nichos de resistência como o Teatro Oficina. A atual cultura unitária, avessa a absolutos, nem de longe é a sonhada por Artaud -e, ao contrário dele, as pessoas não mostram mais grande interesse em permanecer despertas no sonho, conduzindo-o.
Notas: 1. Como nas "Messages Révolutionnaires" (Idées/Gallimard)
2. "L'Homme Contre le Destin", conferência no México.
3. Prefácio a "O Teatro e Seu Duplo" (Ed. Max Limonad).

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