São Paulo, domingo, 1 de setembro de 1996
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As formas da destruição

BERND MATTHEUS
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O teatro é uma ação após a qual não resta ao ator senão lançar-se à morte e viver!" Artaud (1947) Na "Nouvelle Revue Française" de outubro de 1932 aparece o manifesto "O Teatro da Crueldade" -um texto que afronta de tal maneira os colaboradores literários da revista que eles se recusam dali em diante a se verem impressos ao lado de Artaud. Da perspectiva de hoje, tal alvoroço talvez possa parecer incompreensível, embora as intenções do autor -sua linguagem o frustra- não sejam inferíveis à primeira vista.
Artaud enviou ao prelo a 12ª ou mesmo a 15ª versão de um relato cujo título seria alternativamente "Teatro Alquimista", "Metafísico" ou "de Experimento". Manteve por fim "Crueldade", pois a palavra parecia-lhe menos conspícua, ambivalente e equívoca do que os demais atributos. O que se tinha em mente eram a crueldade e a violência cósmicas -o princípio formulado por Heráclito de que sem destruição não há criação. Criação, devir, caos: idéias de natureza cósmica e universal definem a concepção desse teatro não apenas metafísico, mas mítico.
Ao término de mais de dez anos de palco como ator e diretor, Artaud reage à decadência da sociedade ocidental e seus valores (ou a ausência deles), que quase tudo permitem; exatamente por isso, a época atual equivale espiritualmente a um deserto no qual tudo quanto é sagrado volatilizou-se. Sua descoberta tem nome: "marasmo". Excêntrico, portanto, é menos o diagnóstico -escritores, filósofos, sociólogos etc. o teriam aclamado- do que o lugar elegido para articular o conflito, para ministrar a terapia à doença do século: o teatro.
Enquanto artistas e intelectuais ilustres começam a engajar-se politicamente, Artaud sonha com a "comunicação com o universal", com um teatro que seria "o exercício e a expressão de uma necessidade mágico-espiritual". Esse "teatro mágico e ritual" tinha em vista pôr em xeque o mundo interior do homem, e para tanto dirigia-se ao homem "total" -e não ao homem social, fragmentário, deformado. À medida que deseja evocar as forças cósmicas, o "teatro da crueldade" é compelido a ultrapassar o psicológico, a esfera do caráter, dos sentimentos e das paixões meramente humanas.
Metafísica para Artaud é poesia realizada; o auge da poesia, o teatro, é a "poesia pura", o meio comprovado para apontar os limites do logos e da mera psicologia, pois a base da poesia é a imaginação aliada à anarquia. No seu entender, o palco é o lugar por excelência de uma poesia no espaço. O espetáculo é comparado a uma ação ritual ou religiosa que pretende uma decomposição psicológica, um dilaceramento orgânico, uma "sublimação" espiritual.
Tal "espetáculo absoluto" reporta-se às tradições religiosas e teatrais da Grécia e da Índia. Ao contrário do filme, que se restringe a espelhar a realidade, no "espetáculo absoluto" o que importa é conquistar a verdade em seu todo: segundo Artaud, esta consiste em uma atitude espiritual e filosófica -análoga a certos estados mórbidos ou a determinados êxtases- que permitiria a desvinculação com a contingência humana.
O "teatro da crueldade" não seria um teatro artificialista com a pretensão da arte pela arte, mas -e nisso a iniciativa de Artaud é genuinamente surrealista- um teatro da "essência", graças aos componentes do perigo e do risco. Na concepção de Artaud, o teatro não seria mais descritivo, anedótico ou satírico, mas quando muito um "pára-raios" em vez de uma instituição na qual as horas de lazer são agradavelmente preenchidas.
"De modo confesso ou incofesso", escreve Artaud em 1933, no "Segundo Manifesto do Teatro da Crueldade", "de forma consciente ou inconsciente, no fundo o público procura no amor, no crime, nas drogas, na guerra ou na rebelião um estado vital transcendente, um estado poético". O que nos define é o esgotamento, o tóxico, a embriaguez, o êxtase, o anseio pelo impossível, e não apenas a preocupação racional com o futuro, a timorata preservação de nossa existência banal e cotidiana.
Por meio do inconsciente, dos sonhos, da imaginação e da poesia, o teatro nos introduziria ao desconhecido, o que permitiria, por exemplo, às massas experimentarem paixões "sobre-humanas". Por abrir-se a estados espirituais coletivos, à paixão das massas, o "teatro da crueldade" ultrapassa a psicologia individual -o domínio do drama burguês.
O teatro de Artaud pretende, entre outras coisas, compreender conflitos e ao mesmo tempo direcioná-los, conjurar forças malignas, elucidar problemas, solucionar questões em aberto assim como fustigar a sensibilidade dos participantes. A catarse recobra seu posto de honra, ao passo que o teatro como instituição moral, como um empreendimento didático à la Brecht & cia é rechaçado.
Artaud elabora técnicas psíquicas de manipulação emocional do espectador. Quando uma epidemia é capaz de infligir ao organismo humano (e este por sua vez ao espírito) um certo padrão de conduta, os sentimentos e as imagens têm, por outro lado, de insinuar ao espírito (e este por consequência ao organismo) outras tantas atitudes, reflete Artaud ao desenvolver uma linguagem cênica física e objetiva que busca atingir o espírito do espectador com respaldo em todos os órgãos e sentidos. O público há de ser posto em transe, sua sensibilidade há de ser "triturada e hipnotizada".
Em referência ao modo do "teatro da crueldade", pode-se dizer que ele absorve elementos do teatro oriental, embora Artaud tenha assistido somente a dançarinos cambojanos (1922) e, mais tarde, balineses (1931) (quando ele se refere a títeres e autômatos, o que está em jogo é a afinidade com a despersonalização asiática, e não o fascínio futurista pelo mundo técnico).
À linguagem das palavras, ou seja, ao logos sacrossanto, Artaud contrapõe uma "linguagem no espaço"; o diálogo adquire a função de um sortilégio, tão logo a linguagem é estilhaçada "mágica e religiosamente".
O anseio por uma forma de comunicação autêntica dos signos tem em vista não apenas o que Artaud denomina "nova pantomima" e "hieróglifos vivos", mas antes a difusão gestual, visual e acústica da linguagem verbal articulada que culminava na encenação orgânica. Esta deixou de ser um simples ornamento aos diálogos, uma realidade secundária ao texto: caberia à direção desenvolver os temas no palco com marcações precisas. Textos sagrados ou cosmogonias arcaicas seriam preferíveis a peças escritas; no caso destas últimas, melhor seria tratá-las como sugestões temáticas (isto explica o repertório cambiante e heterogêneo projetado pelo "théâtre de la cruauté": seriam representados Hõlderlin, Bchner, Shakespeare, alguns elisabetanos, seu "A Conquista do México" etc.). O diretor alternava-se com o ator.
Títeres, máscaras e objetos reais tornariam obsoleta a decoração e, consequentemente, o verismo. Uma iluminação inovadora, bem como uma sonoplastia inaudita e dissonante, complementavam o instrumental para influir diretamente nos sentimentos e no espírito do público. Colmatar o abismo entre teatro e vida é também outro dos objetivos de Artaud, e para tanto ele sepulta o ranger do tablado sob uma permanente música de fundo, sob um tapete de tons e timbres, além de deslocar o espectador para o centro da ação teatral que se desenrola à sua volta.
Durante três anos Artaud busca em vão quem financie seu projeto teatral, a ser inaugurado seja pela peça "Ricardo 2º", seja por "A Conquista do México". Acasos propícios lhe permitem produzir em 1935 "Os Cenci", uma tragédia segundo Shelley e Stendhal. A "crime-story" documentada historicamente é tratada como uma tragédia antiga, na qual a ninguém é dado furtar-se ao destino.
(Tiranos, insanos e monstros, situados para além do bem e do mal, fascinavam Artaud: Heliogábalo, Gilles de Rais, Sade. O príncipe renascentista Cenci, acobertado pelo clero por ele subornado, teve carta branca para matar e cometer incesto. Assassinado o monstro, as vítimas -sua mulher e filha, que agiam em legítima defesa- pagam com a pena de morte. A peça de Artaud realça a imoderação do velho Cenci, que não respeita laços de sangue nem o representante de Deus na Terra. Beatrice, a filha desonrada, que instiga o atentado homicida contra o pai, é caracterizada como figura ambígua, como se a semelhança ou apenas a atração entre vítima e criminoso fosse uma normalidade.) Com "Os Cenci", Artaud pretende atacar a ordem "per se".
Na prática, Artaud viu-se obrigado (já que dificilmente teria uma segunda oportunidade) a fazer inúmeras concessões, a começar pelo ambiente de pelúcia característico de uma opereta com palco convencional (seu ideal seria um galpão de fábrica remodelado), ou seja, um templo cultural burguês que isolava espacialmente o público das ocorrências do palco. Seu sonho de não trabalhar com atores profissionais limitou-se a poucas exceções -no essencial, ele teve de contentar-se com atores de outros elencos e companhias, raras vezes disponíveis para os ensaios.
Nas fotografias da apresentação, não se notam as máscaras nem os imensos títeres. Mantidos foram a "quadrofonia" como inovação técnica, ruídos eletrônicos amplificados (o estrépito de passos, o tique-taque de um metrônomo, o dobrar de sinos, o rumor de fábricas) e a música, além da circulação dos atores no palco.
"Os Cenci", embora levado à cena sob as mais estritas recomendações do autor, perdeu parte de sua força, mas bastou para afugentar os espectadores, de quem se exigia em excesso. A bancarrota pecuniária de "Os Cenci" que se seguiu à 17ª apresentação o atingiu pessoalmente. O "teatro da crueldade" já nascera morto.
Como os "Pensamentos", a "Fenomenologia da Percepção", "O Capital", "A Interpretação dos Sonhos", "A Experiência Interior", "Ser e Tempo" etc., "O Teatro e Seu Duplo" conta como aquelas obras a que muito se faz referência, embora jamais tenham sido lidas. Eis como a exclusiva alusão nominal degrada os chamados livros de culto em fetiche nas prateleiras -a mera presença da obra basta para enobrecer o proprietário.
A primeira edição de "Le Théâtre et Son Double" atingiu em 1938 a cifra de 400 exemplares. O título e os textos complementares surgiram dias antes e durante a decisiva viagem de Artaud ao México. O livro editado a contragosto pela Gallimard colige as palestras e os manifestos que desde 1932 pretendiam fundar teoricamente o "teatro da crueldade", somados a trabalhos ocasionais para revistas. O autor, depois do fiasco econômico de "Os Cenci", dependia dessa fonte de renda.
Quando a segunda edição de seu livro de ensaios aparece em 1944 -ainda com a reduzida tiragem de 1.500 exemplares-, Artaud mal chega a tomar conhecimento do fato, pois encontrava-se internado num hospital psiquiátrico.
O teatro e seu duplo é antes de tudo uma poética, e depois uma polêmica contra a peça psicologista, ou seja, contra a indústria da diversão, que, à maneira de um digestivo, serve e atende sua clientela; por último, talvez seja uma teoria do teatro moderno que beira as raias do possível. Artaud logrou realizar suas visões somente de modo rudimentar e a curto prazo, durante sua época no teatro Alfred Jarry (1926-29).
Tal poética ensina a emancipação do texto, mas em contrapartida os atores, a gesticulação, os objetos, os títeres, a iluminação, os ruídos e a música assumem a função de sintaxe e semântica: o nascimento do moderno teatro de direção, que subordina o texto ao diretor, isto é, ao presente. O sonho de Artaud tem muito a ver com as fantasias de onipotência, pelo fato de reduzir o ator a um hieróglifo ambulante, ao passo que aspira por meio do espetáculo como um todo a conjurar ou mesmo transformar hipnoticamente o público.
O "teatro da crueldade" poderia ser compreendido como um equivalente da alucinação incitada por drogas: as idéias se sucedem, repetem-se jamais idênticas, e a participação no arriscado entrecho produz seus efeitos. Dificilmente um projeto hedonista, já que o surgimento de uma idéia é igualado a uma intervenção cirúrgica ou a uma consulta ao dentista. A princípio, Artaud exuma a tragédia antiga, na qual o sujeito psicológico -o eu- não tem lugar.
O primeiro equívoco deu-se nos anos 60, em nome da revolta, da libertação, da descoberta e representação de si mesmo à la "living theatre". O mero romper das amarras ("dessublimação"), o êxtase de corpos e vozes chamou-se antiteatro, happening ou fluxo.
Uma recusa a toda disciplina diametralmente oposta ao que propusera Artaud 30 anos antes: no happening, a "ordem ululante" há muito foi suprimida; não se necessita mais de um diretor que manipule e condicione seus atores como a marionetes. A festa dionisíaca transformara a idéia das emoções calculadas, da maquinaria teatral com efeitos previsíveis, em seu contrário.
Nostálgico, a fim de rever certos atores conhecidos após nove anos de confinamento, Artaud compareceu a não poucas encenações em Paris nos anos de 1946-47; as peças, todavia, foram assistidas com conspícuo desinteresse (durante as funções, ele tomava notas, debruçado sobre um caderno, ou comia e bebia seu vinho desrespeitosamente). Os exercícios intelectuais de Sartre, Camus, Beckett e Ionesco ser-lhe-iam insuportáveis.
Artaud insiste na oralidade, na palavra (despida parcialmente de significado), no encantamento, na canção, no grito -em suma, na poesia falada. Um terrorista que detona bombas verbais face à empáfia de nossa normalidade. Sua peça radiofônica "Para Acabar com o Juízo de Deus" (1947/48) ainda hoje carece de adaptação.
Todos os que se envolvem hoje com o teatro "vanguardista" nutrem-se (conscientemente ou não) dos projetos de Artaud: o balé bem como os demolidores dos clássicos e os esteticistas. Paradoxalmente, ambos extremos invertem-se em seus opostos depois de algum tempo; o público, antes provocado, acaba por abraçá-los. Nos últimos anos de vida, quando repudiou o espetáculo cênico, teria Artaud pressentido esse efeito, ou seja, que a própria revolta serviria como um passatempo à burguesia na indústria da diversão? Os insultos ao público são por natureza ainda mais efêmeros que os musicais ou as chamadas megaóperas. Quem ousaria (leia-se: quem se daria ao luxo de) servir-se do teatro, em vez de a ele servir por meio de um público mimado, preguiçoso e, sobretudo, pagante?
Ao fim e ao cabo, nenhum vestígio de Artaud, absolutamente nenhum. Um equívoco fatal, capital.

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