São Paulo, domingo, 1 de setembro de 1996
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Ciladas da imagem

SILVIANO SANTIAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A primeira cilada em que se pode cair, na abordagem biográfico-ficcional de Antonin Artaud, são os olhos. Olhos azuis, assim como estão descritos na resposta ao formulário de passaporte; azuis intangíveis, assim como podem ser vistos nas fotos e nos filmes em preto-e-branco, de que é exemplo "A Paixão de Joana d'Arc", de Dreyer. Olhos azuis, límpidos, profundos e translúcidos, em permanente diálogo com o diáfano e o etéreo.
A segunda cilada em que se pode cair é o desejo de apreender a voz de ventríloquo, proferida pela boca do ator de cinema. Voz que daquele corpo não sai e, se sair, sai em falas que nada dizem, ou que dizem o que ele nunca quis dizer. O ator de cinema em Artaud é o legado pessoal que fica aquém das suas palavras. Por isso, essas imagens cinematográficas são a negação do que é Artaud. O ator de cinema é a representação da vida tal como esta é representada a partir da vida individual do personagem que ele interpreta. Ou seja: é a negação do teatro da crueldade.
Digo "crueldade" como quem diz Vida. Essa Vida comporta o homem, não há dúvida, mas ela não procura "representar" a vida do indivíduo. O teatro da crueldade não se confunde com o teatro burguês de personagens bem desenhados psicologicamente, já sabemos, mas ele também não é aristotélico.
Nos filmes, conta o script alheio; no ator de cinema, conta apenas o contorno físico (a imagem) dos lábios fechados: passarinho em vôo que, depois de muito bater as asas, já cansado e sofrido, plana ao sabor dos ventos. A parte superior dos lábios, a parte negra das asas; a parte inferior, sempre iluminada, a parte clara das asas. O centro da imagem, o biquinho, pouco nítido, apenas anúncio, é o quase-ausente corpo do pássaro em vôo.
A Dor, a Vida. Que não se pergunte a esse pássaro, como Baudelaire perguntou no poema dedicado ao albatroz, como ele andaria no chão, entre os homens. As asas-lábios, de tão desproporcionais em relação ao corpo, são motivo de imensa e intensa dor. Caso feita a pergunta, o pássaro (não o ator de cinema) falará: Mais do que a morte, sou eu o dono da minha dor. todo albatroz é juiz, e único juiz, da quantidade de dor física, ou ainda de vacuidade mental, que ele pode sinceramente suportar sobre a terra. Ao que o homem Artaud, até então mudo, acrescentará em rebeldia contra a lei de 1916, que proibia o uso de entorpecentes: Se pelo excesso de dor, perco a minha lucidez, a medicina só tem uma tarefa: fornecer-me as substâncias que me permitam recobrar o uso dessa lucidez.
A dificuldade maior na abordagem biográfico-ficcional de Antonin Artaud são essas suas palavras, que são suas e não mais são suas. Elas sobrevivem na página de papel graças ao metabolismo digestivo que transforma o nascido homem em profeta. Artaud incorpora o mundo físico e o mundo dito espiritual ao seu redor para recusar ambos, expulsando-os sob a forma de experiências sucessivas de perda -vômito, excreção anal, sêmen, palavras. A história de Deus é escandalosamente fecal. As palavras são a maneira como o corpo vivo elimina, por fragmentos de podridão, a dor que o nutre/destrói.
Escreve Nietzsche que a psicologia do orgiasmo, como sentimento transbordante de vida e força, no interior do qual a própria dor trabalha como estimulante, deu a ele a chave do conceito de trágico, conceito que não fora compreendido nem por Aristóteles nem pelos pessimistas. As palavras de Artaud vivem um estágio ambíguo entre ser o que de mais denso pode vomitar ou defecar o corpo nutrido e o que, nelas, vômito e excremento, pode representar o desejo absoluto de Vida. Falo da vida física, falo da vida substancial do pensamento.
Difícil é representar o corpo de Artaud numa biografia ficcionalizada. Em matéria de "carne" a língua portuguesa é pobre. Em francês há a distinção entre "chair", a carne no sentido espiritual, palavra cara aos poetas simbolistas de que Artaud se distancia mais e mais, e "viande", a carne de animal que nos remete à realidade sangrenta dos açougues, como num quadro de Rembrandt. Há ainda, em francês, o termo "barbaque", que é a palavra popular, tosca e direta, para falar da carne animal de má qualidade. Artaud não se vale nem de "chair" nem de "viande". Escreve: "É pela 'barbaque'/ só por ela/ que se exprime/ o/ aquilo que não se sabe".

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