São Paulo, quarta-feira, 4 de setembro de 1996
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Câmbio e política

ANTONIO BARROS DE CASTRO

A contenção da taxa de câmbio tem se revelado uma arma contundente no combate à inflação. Os economistas de inclinação ortodoxa -que tendiam a privilegiar a ancoragem monetária- com maior ou menor presteza, já trataram de se reconciliar com esta evidência. Também os heterodoxos, adeptos da idéia de que a evolução dos preços, dos salários e da taxa de câmbio deve ser explicitamente coordenada, não podem senão admitir que a fixação ou retardamento do câmbio tem revelado uma eficácia verdadeiramente insuspeitada.
Por outro lado, vai também ficando evidente que a ancoragem cambial traz consigo diversos problemas. Na raiz destas dificuldades reside o fato de que este tipo de expediente altera fortemente a escala de preços relativos. Face às ameaças e oportunidades que daí derivam, as empresas, especialmente no campo manufatureiro, tropeçam com a dura realidade de que parte de seus ativos encontra-se congelada, de que há custos enterrados, de que estão comprometidas com um patrimônio de rotinas e soluções referentes ao campo em que atuam. Numa palavra, sua flexibilidade é severamente limitada. E mais, encontram-se situadas em determinadas áreas ou regiões - o que também limita suas possibilidades de escolha. Como consequência destas restrições -acrescidas do limitado e diferenciado acesso ao crédito- as vantagens e desvantagens trazidas pelos novos preços obviamente não têm porque distribuir-se equitativamente.
Numa primeira fase, os problemas daí derivados não tendem a ser percebidos. A sensação de saída da beira do abismo (a hiperinflação) e os benefícios objetivamente acarretados pelo tombo da inflação, criam um autêntico clima de euforia. Além disto, e na medida em que seja firme o ímpeto expansivo inicial, haverá espaço para uma expansão bastante generalizada - ainda que seja rápido o crescimento das importações. Como se não bastasse, o crescimento puxado pelo consumo tende a ser generoso do ponto de vista fiscal. Por todas estas razões, este é também o período de máxima autonomia da equipe econômica.
Mas existe um segundo tempo.
A questão de fundo consiste em que o rolo compressor dos preços em que consiste a abertura com sobrevalorização é um processo que começa pelo mais fácil.
Antes de mais nada, porque os resultados no combate à inflação -desde que a delicada desindexação inicial seja procedida com êxito- surgem de maneira espetacular.
Uma segunda razão, para a qual estou aqui chamando a atenção, consiste em que as desigualdades e assimetrias no tratamento de setores, regiões e camadas sociais não tendem a ser logo percebidas. E ainda quando detectadas, levam algum tempo para traduzir-se em demandas de proteção ou compensação de eventuais estragos e injustiças.
Em síntese, numa primeira fase -quando é máximo o prestígio da equipe- as reivindicações capazes de agredir a lógica do programa tendem a ser mínimas. Mais adiante, contudo, quando o crescimento cessa (e a própria apreciação inequivocamente prejudica o crescimento) tendem a avolumar-se as demandas, multiplicando-se as dificuldades. Vale a pena, a este propósito, ter em conta aspectos de evolução recente da vizinha Argentina.
Cavallo foi um mestre na arte de defender a coerência do plano. Mais que isto, de construir e manter consensos. Hoje está claro, contudo, que atuou também, intensa ainda quando veladamente, no sentido de intervir e apagar incêndios. Regimes especiais, taxas estatísticas, devoluções de impostos, quotas e outros expedientes foram em diversos casos introduzidos. A rígida fachada legal do Plano de Conversibilidade e a forte personalidade do ministro garantiam, no entanto, a manutenção -na percepção do público, mais do que na realidade- de um elevado grau de coerência. Para isto colaboraram, convém insistir, o longo e intenso período de crescimento e a liderança pessoal de Cavallo. Presentemente, com a economia mergulhada na recessão e um (novo) ministro, dotado do carisma de um manual de economia, tudo parece complicar-se.
A bem dizer muitos economistas já sabiam que planos baseados em câmbio dificilmente podem ser corrigidos, ainda quando ocasionem dificuldades crescentes. O que não se sabia é que num quadro (como o atual) de super-abundância da liquidez internacional, este tipo de plano pode ter uma eficácia anti-inflacionária estupenda. E mais, que a gestão do plano requer crescentemente política, enquanto os respectivos gestores tendem a desfrutar de autonomia decrescente.

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