São Paulo, sexta-feira, 6 de setembro de 1996
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Zé Celso encontra a negação da negação

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

É difícil não se deixar levar pelo Antonin Artaud de "Para Acabar com o Juízo de Deus", no título da montagem, anteontem no Masp, ou "Para Acabar com o Julgamento de Deus", no título tradicional da peça radiofônica do autor, ator, diretor francês.
O que começa como o fim do juízo de Deus termina, despedaçada a cruz, derrotado Deus, com o fim do juízo do homem.
(A peça, a maior parte do tempo, é uma adaptação iconoclasta, europeizada, à "Deus é merda", de um ritual de índios mexicanos, contra o símbolo do conquistador espanhol, a cruz. No final é que também se volta para o homem.)
Encenado por Zé Celso, de "Bacantes", espetáculo em que se proclama que "o teatro é a casa do caralho", a peça radiofônica dobra em fascínio, pois proclama ao final, pelo contrário: "Quando vocês tiverem feito um corpo sem órgãos, aí vão ter devolvido a verdadeira e imortal liberdade".
É a negação de Zé Celso -ou não. Foi o diretor, tornado ator, quem interpretou aquele final, com uma qualidade de verdade cênica que o início do espetáculo, mais próprio do que se conhece do Oficina, profano, iconoclasta, desta vez não chegou a atingir.
Em momento de transição, depois do renascimento com "Ham-let", "Bacantes", o Oficina encontra a negação da negação, o "não ao não", como está no texto de "Para Dar um Fim no Juízo de Deus", na hora certa.
Semana passada, ao ouvir a gravação original dirigida e interpretada pelo próprio Artaud, e que foi censurada meio século atrás pela rádio estatal francesa, Zé Celso dizia, algo angustiado no reencontro com o mestre dos anos 60, que não há nada mais radical.
Ao mesmo tempo, como revelam a gravação original e a esclarecedora montagem de Zé Celso (e não deve ser nada fácil ser esclarecedor com o fugidio texto artaudiano), nada mais simples.
Não que Artaud, claro, esclareça o que vem depois do fim de Deus e da castração do homem -que é precisamente o momento presente na história, em que a utopia humanista caiu com o muro, mas Deus teima em não voltar.
Diz Artaud, após a castração: "Aí vocês vão lhe reensinar a dançar pelo avesso/ como no delírio das danças de rua/ e esse avesso será seu verdadeiro direito".
Zé Celso representou o oráculo, pois não se trata de outra coisa, com fragilidade de criança -se é que é possível descrever a cena.
Nada que explique o significado; de todo modo, o que menos importa neste fim do juízo de Deus e do homem é mesmo o significado.

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