São Paulo, sábado, 7 de setembro de 1996
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'20/20' junta Blake com rock 'sinfônico'

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Quem poderia imaginar, mas o rock "sinfônico", 20 anos depois, ressurge. Foi 20 anos atrás que o diretor George Coates criou a George Coates Performance Works, GCPW.
Também foi 20 anos atrás que Emerson, Lake & Palmer tocavam como nunca, com uma versão carregada, pretensiosa, de "Jerusalem", poema de William Blake.
O poeta romântico está novamente entre guitarras, agora para "headbangers", em "20/20 Blake: A Virtual Sho", parte do Festival Internacional de Artes Cênicas.
Nada a dever aos espetáculos "sinfônicos" dos anos 70.
Não à toa, um comentário ouvido ao final da apresentação foi de que talvez, com um ácido, fosse possível apreciar melhor "20/20".
Mas não falta quem aprecie -pelo contrário, como mostrou a platéia lotada do teatro, sexta- mesmo sem as drogas mais pesadas de 20 anos atrás.
Na descrição algo jocosa do jornal "San Francisco Examiner", citado no material de imprensa, Coates é mesmo "o que de mais próximo existe de uma experiência extracorpórea que se pode comprar legalmente e de que se pode desfrutar sem efeitos colaterais".
Durante hora e meia, imagens formadas a partir das pinturas do próprio poeta são sobrepostas a excertos de poemas dele, tudo sublinhado por guitarras e por um cantar incômodo, por vezes esganiçado, dos atores-cantores.
Os espectadores acompanham a tudo, inclusive algumas imagens verdadeiramente fascinadoras, com óculos "de terceira dimensão", como dizem no Parque da Mônica, ou "polarizadores", como prefere o espetáculo.
"20/20", expressão que se refere à visão perfeita, ao zero grau dos exames oftalmológicos, é um espetáculo na faixa "multimídia", em que diversas formas de arte são reunidas -quase sempre com o resultado de, como indica o título, sublinhar a experiência visual.
Blake é, para a peça, um artista multimídia "avant la lettre", tendo sido poeta e pintor.
Em meio ao fascínio tecnológico, das guitarras e dos indescritíveis efeitos visuais, muitos deles programados por computador e alguns até tirados de experiências da Nasa, para não esquecer outra referência básica dos anos 70, é possível distinguir alguma coisa de William Blake, o poeta.
A sua fascinação cosmológica está presente, assim como algumas de suas personagens de caráter bíblico. Também, é claro, a fascinação dos românticos de dois séculos atrás pela "experiência", pelo viver uma experiência.
Foi com esta mesma justificativa que, ano passado, a neo-romântica "Grande Viagem de Merlin", dirigida por uma das melhores companhias recentes, de Ricardo Karman e Otavio Donasci, viajou por espaços inusitados de São Paulo, em "experiência" única -mas distante do que se pode descrever como o melhor teatro, antes e depois dos românticos.
Espetáculo multimídia, também pouco relacionado ao que se pode descrever como o melhor teatro, "20/20" estaria mais perto, realmente, dos excessos "sinfônicos" de 20 anos atrás -com direito até mesmo ao medonho conflito de canto lírico com bateria.
Como experiência, ou como "festa", recordando os esforços de teatro urbano do início da Contra-Reforma, aliás tão valorizada pelos românticos, "20/20" não poderia ser melhor.
Como teatro ou arte, em que se costuma pedir algo além do bate-cabeça dos shows, da fascinação, "20/20" surge bastante vazia. Tecnologicamente, de qualquer maneira, como quer o festival, é uma verdadeira aula.

Peça: 20/20 Blake: A Virtual Sho
Criação e direção: George Coates
Elenco: Lauren Carley, Tim Gibbler, Bernie Miller (William Blake) e outros
Quando: hoje às 20h e 22h30, amanhã às 17h e 20h, no teatro Sérgio Cardoso
Ingressos: tels. 289-2358 e 5580-8202

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