São Paulo, domingo, 8 de setembro de 1996
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O prazo da receita

ABRAM SZAJMAN

Brasil e Argentina seguiam, há algum tempo, caminhos paralelos. Inflação escabrosa e pífias tentativas de estabilização, pânico seguido de períodos de esperança e frustração sucederam-se nos dois países. Mais recentemente, os planos Cavallo e Real desenharam dois cenários com muitas semelhanças e algumas diferenças formais e de conteúdo, sobretudo na rigidez do câmbio e no redesenho do perfil do Estado.
Entre nós, o câmbio não é propriamente um dogma; pode flutuar, embora sob estreita vigilância do Banco Central. Quanto ao redimensionamento do Estado, a partir de sua retirada do setor produtivo mediante privatizações -levada às últimas consequências na Argentina-, no Brasil está mais para uma carta de intenções.
Mesmo assim, o custo da estabilização também já se faz sentir entre nós. No início do Real, o fim da corrosão dos salários pelo imposto inflacionário elevou a renda e proporcionou um certo crescimento da atividade econômica. A abertura comercial, por sua vez, iniciada no governo Collor, contribuíra antes para aumentar a competição e frear os preços.
Hoje, o panorama é diferente. Setores industriais em expansão demitem em lugar de contratar. A racionalização da produção, a incorporação de tecnologias de ponta e as importações têm reduzido a necessidade de mão-de-obra. Tudo isso sem que o governo saia do campo produtivo, mantendo praticamente intacto o conjunto de empresas estatais. Na administração direta, a reforma administrativa não se consumou, nem a pretendida redução do número de funcionários públicos.
O exemplo argentino, muito elogiado no chamado Primeiro Mundo, suscita indagações. A Argentina seguiu à risca a cartilha da estabilização. O Estado de fato encolheu. Quase nada resta de sua presença no setor produtivo. Petróleo, eletricidade, telefone, muitas estradas e companhia aérea foram vendidos. O governo nem sequer pode reclamar dos políticos, pois o Congresso aprovou todas as reformas propostas, inclusive a reeleição, e o povo deu um crédito de confiança ao presidente Menem, reelegendo-o. Só recentemente, nas eleições municipais, deu um passo atrás e consagrou a oposição na Prefeitura de Buenos Aires.
Pode-se dizer que o governo argentino ganhou um talão de cheques assinados em branco e fez tudo o que pretendia, mas com resultados pouco animadores. Insolvências em série e desemprego crescente ameaçam provocar uma séria crise política no país e lançam no ar a dúvida: não seria demasiado alto o preço da estabilização, segundo a receita prescrita para a Argentina?
O Estado estabelece, em qualquer economia, presença marcante no desenvolvimento do mercado. No caso brasileiro, só a paralisação dos investimentos federais em infra-estrutura e o calote dado nas empreiteiras já acarretou insolvências e desemprego.
As grandes empresas de engenharia capitalizadas buscam mercado no exterior, não raro com êxito. Embora se saiba que a redução do tamanho do Estado é fundamental para a estabilização definitiva, devemos cogitar os efeitos que isso provocará no nível da atividade econômica e do emprego.
O caminho ao qual essas políticas econômicas nos levam não parece ser o da queda da inflação e do crescimento, mas o da estabilidade e da recessão. Será que, em função da necessidade de reduzir os problemas sociais, vender o Estado resolve?
A conclusão que se pode tirar dos fatos é, no mínimo, preocupante. Os mecanismos de estabilização não parecem ter o poder de recompor as estruturas para a retomada do crescimento. Por isso, cabe mais uma pergunta: no atual cenário, é possível a retomada do crescimento sem o retorno do crescimento?
Nossa receita de estabilização tem prazo certo. E esse prazo é a capacidade de resistência da sociedade aos efeitos colaterais do remédio. Na Argentina, parece que a resistência chegou ao limite. No Brasil, com muita coisa ainda por fazer, os sinais de impaciência são visíveis.

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