São Paulo, domingo, 8 de setembro de 1996
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A civilização e o garfo

PETER BURKE
ESPECIAL PARA A FOLHA

A civilização humana de fato progride? Que é a civilização? Estas são questões antigas, discutidas desde os tempos de Roma, e ainda difíceis de responder. Qual então a importância do hábito de comer com garfos? O mérito de ter formulado essa pergunta e ainda de ter demonstrado que não se tratava de trivialidade vai para o sociólogo Norbert Elias, em seu livro hoje famoso, "O Processo Civilizatório", publicado em alemão em 1939.
Combinando idéias de Max Weber e Sigmund Freud (cujo livro "O Mal-Estar na Civilização" data de 1929), Elias definiu a civilização em termos de autocontrole ou, mais exatamente, como "constrição social à autoconstrição". Em outras palavras, ele planejava escrever simultaneamente uma psicohistória e uma história sociocultural, a história da paulatina ascensão do superego. Seu estudo unia uma teoria geral do processo civilizatório a uma série de estudos particulares sobre a história da vida cotidiana e da cultura material -territórios históricos que ele foi o primeiro a explorar.
Tal como Freud na "Psicopatologia da Vida Cotidiana", Elias analisou detalhes aparentemente triviais a fim de ilustrar mudanças importantes. Numa passagem frequentemente citada, Elias apresentava o garfo, ao lado do lenço, como objeto material que tanto ilustrara quanto impulsionara o processo civilizatório. A invenção e a difusão do garfo, segundo ele, haviam acompanhado o desenvolvimento das maneiras de mesa, e estas podiam ser entendidas como microcosmo de um processo mais abrangente rumo ao ideal de autocontrole.
A idéia de que facas e garfos eram signos da civilização, da "cultura" enquanto oposto à "natureza", era pressuposto comum a vários dos viajantes anglo-americanos que visitaram o Brasil no século 19. Em sua "Narrative of a Voyage to Brazil" (1805), Thomas Lindley achou "indelicado e repugnante" o costume brasileiro de comer com os dedos. Henry Koster notou em suas "Travels to Brazil" (1806) a ausência de facas às refeições. John Luccock, em suas "Notes on Rio de Janeiro" (1820), foi bem mais arguto ao perceber que só os homens usavam facas, ao passo que mulheres e crianças serviam-se com os dedos. E o missionário americano Daniel Kidder, nos seus "Sketches of Residence and Travels in Brazil" (1845), indignou-se com seus predecessores por terem afirmado que os brasileiros não usavam facas e garfos.
Muito curiosamente, estes viajantes oitocentistas vinham de países que recentemente haviam adotado o uso do garfo, ainda que o uso de facas já fosse tradicional. O garfo já era conhecido na Idade Média -na Bizâncio do século 11 ou na França do século 14-, mas mesmo assim permaneceu raro até o século 17. Num tratado destinado a ensinar bons modos a rapazolas, Erasmo escreveu páginas inteiras sobre o comportamento à mesa sem uma única vez mencionar o garfo. É mesmo possível que jamais tivesse visto um exemplar, ainda que, segundo se diz, um certo bispo holandês de sua época tenha possuído um -só um.
Por aquela época, os garfos estavam apenas começando a ser adotados nos círculos aristocráticos da Itália renascentista. Num poema do século 15, o autor descreve sua vida no campo e vangloria-se de que "Aos domingos, como num prato com um garfo, igual à gente da cidade". Mais ou menos na mesma ocasião, o senhor de Ferrara presenteou um conjunto de garfos ao rei da Hungria. Muito embora fosse homem lido e cultivado, o rei não encontrou grande utilidade naqueles objetos exóticos. No início do século 17, o novo instrumento italiano ainda causou tanta surpresa a um viajante inglês que ele teve que recorrer a um diagrama para poder se explicar a seus compatriotas.
A partir de pesquisas de inventários, os historiadores da cultura material puderam determinar que, na Inglaterra e na América do Norte, os garfos só penetraram na vida cotidiana da maioria da população por volta do final do século 18. Nos EUA da década de 1770, eram símbolo da classe média.
Ainda que seja difícil ter certeza, meu palpite é de que os garfos eram então usados, ao lado da melhor porcelana da casa (moda recém-chegada ao Ocidente), para os mesmos propósitos: sua função essencial era a de marcar e ritualizar as refeições especiais, como o jantar de domingo a que se referira o poeta italiano. Garfos eram símbolos de status. Simbolizavam o status não porque fossem inicialmente raros e caros, mas porque expressavam as pretensões de seu dono a certo grau de civilização, de superioridade perante as hordas de dedos engordurados.
Se devemos ou não levar a sério essa pretensão -bem, essa já é outra questão. Mas é curioso que tenha surgido numa época em que os ocidentais voltavam-se para a Grécia e a Roma antigas como modelos de civilização: pelo que sei, ninguém jamais notou a discrepância entre o culto à Antiguidade Clássica e o culto aos garfos.
Seja como for, o prestígio de que goza o garfo revela uma notável preferência ocidental por objetos materiais em prejuízo das habilidades corporais -preferência a que historiadores, sociólogos e antropólogos deveriam dar mais atenção. Quem quer que tenha observado como, por exemplo, os hindus ou os malaios fazem suas refeições com a ajuda dos dedos terá notado que essa é (ou pode ser) uma arte. O domínio dessa arte poderia igualmente muito bem figurar como signo de refinamento, bem ao lado da posse de um conjunto de talheres em prata ou aço inoxidável.
Se Norbert Elias estava certo ao definir civilização como autocontrole, ele estava certamente errado ao dar precedência aos garfos. Sua hipótese fundamental também poderia ser questionada. Qual a forma mais extrema de autocontrole humano? O exemplo que me ocorre agora é o de um samurai praticando o haraquiri, lentamente com uma espada. A questão sobre o que seja a civilização permanece difícil de responder.

Tradução de Samuel Titan Jr..

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