São Paulo, domingo, 8 de setembro de 1996
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Apogeu e crise do estruturalismo

LUIZ TARLEI DE ARAGÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O estruturalismo chegou ao seu "fim", ou a crise que vive atualmente assinala, na verdade, o esgotamento (temporário?) da matriz cultural francesa como um todo? Estaríamos, neste caso, diante de um fenômeno mais complexo do que o cíclico esvaziamento desse paradigma de "longo curso" (é necessário admitir-se) das ciências humanas. Essa matriz cultural pontificou soberana, no mínimo, desde a Revolução Francesa em todos os cantos da Europa e fora dela; percorreu o mundo todo e, em sua vertente acadêmica, enxertou as universidades da América, África e mesmo da Ásia. A esse título, é preciso lembrar, por exemplo, que todos os grandes líderes políticos asiáticos (de Chou En-lai e Ho Chi-min, sem falar em Nerhu e Gandhi), além de Karl Marx, conheciam as idéias de Proudhon e Saint-Simon.
Essa destilação de valores franceses não ficou apenas no campo político e intelectual, cobrindo, na verdade, vastos domínios da indústria humana (cultura), indo desde as artes (chamemos a atenção, particularmente, para a pintura, a escultura e a literatura, o teatro e, mais recentemente, a cinematografia) até a gastronomia, a perfumaria e o mobiliário.
A "morte" do estruturalismo não seria um sintoma, o mais visível talvez, da perda do conteúdo singular da cultura francesa? Daquela sua dimensão de um humanismo visionário, desafiador e que melhor encarnou, durante tanto tempo, o individualismo moderno? Recentemente um respeitado jornalista -Andrew Neil, antigo redator do "Sunday Times"- escreveu que os filósofos franceses "se tornaram mudos" e que a pintura na França "não deu à luz um grande pintor desde Matisse", ou seja, desde meados da década de 50 (Matisse, 1869-1954). Alan Riding, especialista da cultura européia, no "New York Times", afirmou que "hoje poucos escritores e músicos franceses são conhecidos fora de suas fronteiras"; e conclui pelo diagnóstico de que o "mal-estar da cultura francesa é sintomático de uma crise profunda".
Essa crise profunda nada mais é que o desfecho de uma oposição aparentemente irreconciliável. De um lado, ter-se-ia a tradição do racionalismo idealista, da qual Lévi-Strauss é herdeiro, e à qual acrescenta, como ele nos confessou há pouco, os aportes do culturalismo americano de Lowie, Boas e Kroeber (aliás, estes dois últimos alemães). Do outro, ter-se-ia uma tradição libertária e "individualista" que vem desde o fundo das eras da civilização rural francesa, como enfatizamos em nossa tese doutoral, e que o excelente Marc Bloch já havia pontuado em seu trabalho "O Individualismo Agrário na França". Daquela corrente são "representantes" Descartes, o positivismo comtiano e, finalmente, Lévi-Strauss, como assinalamos acima. A segunda vertente tem seus representantes ilustres nos jacobinos e em Proudhon. O fato maior nesse campo, em nossa opinião, teria sido a tentativa bem-sucedida de juntar, unir, na "República Francesa" as antinomias contidas nas duas vertentes, dando ordem (razão) ao desejo (sentimento) de liberdade que, por assim dizer, brotam como poderosa fonte, no fundo ontológico francês.
Como antropólogo estruturalista, o que posso dizer a respeito do estruturalismo, é que as estruturas existem, quer queiramos ou não. A grande questão do estruturalismo, que tampouco é nova, é que ele permitiu ao ser humano uma visão de si próprio e uma consciência mais "sintética" das sociedades às quais pertence.
O fato novo no estruturalismo é que ele propicia um método absolutamente novo de fazer isso. Como disse muito bem um estudioso da obra de Lévi-Strauss, do ponto de vista sociológico, o estruturalismo do mestre francês é, de certa forma, "uma nova versão da psicanálise", mas que "como em todas as heresias psicanalíticas, negaria o corpo, revestindo, neste caso, as idéias de Freud com os ordenamentos da cibernética" (1). No entanto, distanciamo-nos desse mesmo autor, quando afirma que "como fenômeno intelectual" seu "nascimento virgem" (sic) é desconhecido.
Todos sabemos que as origens do estruturalismo remontam ao Renascimento, passando pela filosofia natural de Goethe, e após, "tomando vias paralelas, caminho pela linguística de Von Humboldt e Ferdinand de Saussure, assim como pela biologia de d'Arey Wentworth Thompson", como bem lembrou Lévi-Strauss. O mestre do estruturalismo na França observa ainda que essa corrente de pensamento na antropologia nasce propriamente na Holanda, antes da Segunda Guerra Mundial.
Esse fato estaria virtualmente ligado a um fenômeno ao qual nós, antropólogos, estamos habituados a assistir: a descoberta de "teorias" a partir da observação aprofundada da própria ideologia nativa. Assim, o império colonial holandês tinha a Indonésia sob seu domínio. A exemplo dos ingleses na África e dos franceses em parte da Oceania, os antropólogos holandeses debruçaram-se majoritariamente sobre a realidade ideológica nativa indonesiana, ela mesma fortemente estruturalista. Assim, P.E. Josselin de Jong e seus colaboradores, de certa forma e antes de Lévi-Strauss, foram "levados ao estruturalismo" por seus sujeitos, da mesma forma que Mauss elaborou a teoria da dádiva e a noção de "hau" "em cima" dos nativos da Oceania, e Julian Pitt-Rivers descobriu a "honra", estudando e convivendo com os povos mediterrâneos.
O que Lévi-Strauss deixa de observar é que ele mesmo é um "nativo" do ponto de vista dos antropólogos não franceses. E, para nós, que não somos franceses, mas somos antropólogos, os conterrâneos de Descartes são tão estruturalistas quanto os indonésios. Pelo menos por uma de suas vertentes, como vimos. E isso a um tal ponto (e igualmente aqui Lévi-Strauss silencia, talvez de forma exageradamente idiossincrática), que um dos maiores pensadores da Escola Sociológica Francesa, Robert Hertz, já havia chegado antes de sua morte em 1915 -aos 30 anos- a, pelo menos, três elementos essenciais do estruturalismo: o dualismo, a oposição e a polaridade.
Dessa forma, poderíamos dizer que o estruturalismo é mais "antigo" na França do que seu próprio teórico talvez o suponha. Ele nasce da própria ideologia "nativa" francesa que tem, no que concerne às idéias, as mesmas características de Janus: uma face voltada para a liberdade (desejo) e outra para a ordem (racionalidade) (2).
Notaríamos que, no reino das idéias teóricas, até agora não se deu na França, o que ocorreu sob o ponto de vista da filosofia política: uma "síntese republicana", uma "declaração dos direitos do homem" que juntasse, nesse campo, as duas correntes antinômicas. Tudo se passa hoje, como se vivêssemos o desfecho agudo de uma crise que pertence ao próprio corpo ideológico francês e que por períodos cede a proeminência a uma de suas partes componentes, para, em seguida, dar ocasião à inversão do quadro. No entanto, o que se passa hoje de mais específico e singular é que as duas correntes perderam sua força de "exclusividade", de "enfrentamento ideológico" inquestionável, e abriram brechas e influências cooptadas alhures, na globalização das idéias.
Fim do estruturalismo, fim da racionalidade positiva, ou nova vida a um estruturalismo reformado, mais "arejado" e globalizante (envolvendo a incorporação de valores) como aquele de Louis Dumont e seus seguidores? Novas perspectivas, com a crítica a alguns conceitos um pouco ingênuos e positivistas de Mauss, como aqueles no cerne de sua teoria sobre a dádiva, recente e longamente criticados pelo filósofo e antropólogo Maurice Godelier.
Lembro-me que, certa vez, acompanhei em Pequim -pelo "China Daily"- uma conversa entre Henry Kissinger e o primeiro-secretário do Partido Comunista Chinês à época. Estávamos às vésperas do bicentenário da Revolução Francesa, e o ex-secretário de Estado Americano quis saber o que o prócer político pensava daquele fato de tanto relevo no Ocidente. O chinês respondeu que era muito cedo -só dois séculos- para que desse sua opinião. No registro das idéias mais fundamentais de um povo, ou de uma civilização, poucas coisas desaparecem definitivamente. Elas eventualmente cedem seu lugar, para esperar de novo sua vez, no conforto de suas determinações inamovíveis.

NOTAS: 1. In Badcock, C. R., "Lévi-Strauss: Estruturalismo e Teoria Sociológica" (Zahar, 1975. pág. 15). Ver, a esse respeito, nosso "A Noção de Inconsciente na Obra de C. Lévi-Strauss", in "O Inconsciente, Várias Leituras" (Escuta, 1992).
2. Lembramos aqui que o filósofo e sinólogo Jean Pouillon reedita, em sua pessoa, essa duplicidade, juntando Sartre e Lévi-Strauss, Freud e a antropologia, frequentemente ambas as escolas.

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