São Paulo, domingo, 8 de setembro de 1996
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A impostura do cinema brasileiro

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Já é possível escolher entre filmes brasileiros na página de cinema sábado de tarde, domingo, os fins-de-semana. Mas isso, que deveria ser uma boa notícia, não demora a se transformar num incômodo constrangedor. Basta ter assistido a um dos filmes, que você escolheu alegremente, tarde de sol, cheio de esperança na "nova" cinematografia brasileira, para intuir a sequência de equívocos por vir.
Por exemplo: o brasileiro "Jenipapo". Não são necessários mais do que dez minutos para se perceber que há um equívoco cabal naquilo. O filme, falado em inglês, estrelado por ator estrangeiro -"story by" e "directed by" Monique Gardenberg- errou de nome. Devia se chamar "Grapefruit".
Seria mais honesto se se chamasse "Grapefruit", fruta muito comum nos Estados Unidos, que americano adora comer no café da manhã (quer dizer, no "breakfast"), que tem gosto amargo e que, em se plantando por aqui, em terras tropicais, não dá. Não dá. Tradução: toronja ou toranja. Detalhe: "Jenipapo" trata do grito dos excluídos, os sem-terra brasileiros. Mas só que eles gritam em inglês, numa transposição linguística absolutamente inverossímil.
Fim-de-semana seguinte. Você já sabe, no fundo, que vai se repetir o mesmo desinteresse, a mesma sensação de fastio que o cinema nacional sempre causou em você, espectador dos mais comuns, que nunca distinguiu entre Cacá Diegues e Arnaldo Jabor (e não perdeu nada).
Mas antes de sair para o segundo filme, você ainda faz um esforço de concentração: esqueça quem você é, sua felicidade ou sua tristeza, vá ao cinema como se fosse assistir a película de algum povo desconhecido, que não lhe diz respeito.
Saia preparado para fazer a concessão, sabendo que não vai se emocionar, não vai se identificar com nada, que aquele jenipapo que seria você -a fruta ou a mancha escura, sinal de mestiçagem brasileira, que você tinha estampado na bunda quando nasceu-, aquele jenipapo é, na verdade, um indigesto e estranho "grapefruit" que querem lhe enfiar goela abaixo.
Ainda assim, você vai, como quem presta um serviço de utilidade pública, em prol do "renascimento" do cinema nacional.
Quinto fim-de-semana -quintos dos infernos. Digamos que você já assistiu a "Terra Estrangeira", "Carlota Joaquina", "O Quatrilho", "O Guarani", "O Monge e a Filha do Carrasco" (ou, corrigindo, "The Monk and the Hangman's Daughter") e "Tieta".
A despeito disso, já é possível classificar o equívoco. Primeiro: o "novo" cinema brasileiro não é exatamente novo, a não ser no som, que melhorou, na luz etc. Você tem a impressão não só de que já viu esse filme como também de que está assistindo sempre ao mesmo filme, especialmente porque há pouca variedade de atores (Alexandre Borges, Marília Pera, Patrícia Pillar, por exemplo, repetem-se nuns e noutros), fracos, sem domínio da técnica de cinema, com exceção da sempre admirável Marília Pera.
Segundo: o cinema não renasceu, porque não sabe a que veio, não sabe quem é, não sabe qual é a cara (nem a bunda) brasileira. Não sabe nem sequer que língua fala. De duas, uma: ou os "novos" cineastas brasileiros passaram a vida toda assistindo filme americano a ponto de acharem que só é cinema o que soa em inglês, ou foram todos acometidos pelo fenômeno Hector Babenco -o diretor portenho-brasileiro que se deu bem lá fora, fazendo filmes em inglês.
Com a desculpa de que precisam "penetrar" no mercado internacional, estão conseguindo transformar o cinema nacional numa babel enganosa e inexpressiva. O processo começou timidamente, com o desnecessário narrador meio escocês de "Carlota Joaquina" e se disseminou feito praga.
Ora opta-se integralmente pela língua inglesa, ora pela mistura mal-ajambrada entre português e inglês. Quando não, vai-se do macarronês italianado, transposto da novela de televisão para "O Quatrilho", até a algazarra de "Terra Estrangeira", que mistura português, basco, espanhol, francês e inglês no mesmo caldo ralo.
Terceiro: a indecisão de língua é apenas um dos sintomas da megalomania que caracteriza esse "novo" cinema, ávido por um Oscar. Com muito dinheiro no bolso e uma câmera na mão, os cineastas ocupam-se das grandes metáforas, das grandes alegorias que sugerem uma vaga idéia, uma miragem do que querem representar: o Brasil.
Daí os filmes de fundo histórico ("Carlota Joaquina"), ou empenhados em rever a história (em busca de uma identidade nacional, parece), como o artificial "O Quatrilho" e o pretensioso "Terra Estrangeira". Daí também os filmes literários, como "O Guarani" (vexatória "retomada" do nosso romantismo) e os subliterários, como o não menos vergonhoso "Tieta", garatuja da brasilidade.
Alguns desses filmes escolhem desperdiçar o feijão-com-arroz dos argumentos para se lançarem numa aventura sem pé nem cabeça, que não interessa a ninguém, a não ser aos próprios cineastas e aos grupelhos em que eles circulam. Basta observar, quanto a isso, as alusões explícitas a Gilberto Gil em "Tieta" e a Gerald Thomas em "Terra Estrangeira".
O caso de "Terra Estrangeira" é típico. O filme se perde em delírios alegóricos sobre a conquista, o além-mar hispano-português, a inferioridade da colônia, a imigração etc., quando podia muito bem ter se restringido ao feijão-com-arroz do argumento, a historinha do brasileiro que teve seu dinheiro confiscado no governo Collor.
Quem sabe estaria aí, afinal, um pouco de realidade e paixão, do dramazinho da sua vida pequena como qualquer outra -a sua, de você, "euzinho" ou "euzinha" da poltrona, à espera do milagre de se identificar com um filme nacional.
Fim-de-semana à parte: "Tieta", a mentira da década. Do "grapefruit" ao vatapá -ou melhor, à frigideira de maturi, o prato preferido de Caetano Veloso, alusão explícita e gratuita nesse filme absurdo. Do inglês ao nordestinês forçado de Sonia Braga.
O diretor Cacá Diegues foi fidelíssimo ao populismo literário de Jorge Amado, a saber: pieguice e volúpia em vez de paixão, estereótipos e tipos folclóricos em vez de pessoas, pitoresco em vez de captação estética do meio, descuido formal a pretexto de oralidade, e o uso imotivado do calão (em palavras do crítico Alfredo Bosi).
Com roteiro capenga de João Ubaldo, cheio dos matizes de bossalidade de seu festivo grito de "viva o povo brasileiro", "Tieta" quer ser o veiculador da "imagem do eros do povo". Não passa de uma enganação ancorada na mais agressiva das campanhas publicitárias, que traz na linha de frente ninguém mais ninguém menos do que Caetano Veloso e sua trilha sonora equivocada, ruidosa e tão palavrosa que atrapalha o filme em vários momentos. E de mau gosto. A não ser que se considere boa música um refrão como o de "Tieta, eta, eta". O filme, que parece feito de encomenda para a autolouvação da corriola baiana, exagera no tempero de dendê. Dá caganeira.
Quarto e último: um dos poucos filmes brasileiros de que realmente gosto ainda é "Memórias do Cárcere", do imbatível Nelson Pereira dos Santos, que, não se sabe como, fez a recente e incompreensível besteira amadorística de "A Terceira Margem do Rio".
Último fim-de-semana. É preciso fazer uma ou duas ressalvas à onda de idiotia do cinema nacional: "Sábado", de Ugo Giorgetti, ainda que limitado à linha do besteirol; e "Lamarca", de Sérgio Rezende, filme quase emocionante. Para não dizerem que eu só "detonei".

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