São Paulo, domingo, 8 de setembro de 1996
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As armadilhas da vida de repórter

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

"Rio Bandido", de Roni Lima, conta a história de Affonso Barreto, jovem de classe média baixa de Ramos, zona norte do Rio, repórter novato de um dos grandes jornais do país, o fictício "Correio Carioca". Inicialmente deslumbrado, Barreto conhece, aos poucos, os meandros nem sempre charmosos da profissão e depara com traços de caráter nada agradáveis em certos colegas. Em pouco tempo, enfrenta uma ebulição interna cortante, cujo desfecho se dá longe do brilho e da realização social e pessoal com quem sonhara.
Para escrever o livro, Roni Lima, 38, repórter da sucursal do Rio da Folha, inspirou-se no romance "Recordações do Escrivão Isaias Caminha", de 1909, no qual Lima Barreto (1881-1922) -de quem Roni empresta o nome de seu personagem- traça um perfil impiedoso dos jornalistas do "Correio da Manhã" da época.
Assim como na obra de Lima Barreto, a abordagem de Roni Lima é essencialmente crítica, e, numa visão maquiavélica -obviamente não-séria-, poderia até servir como texto de defesa de mercado para quem já está dentro dele, um alerta aos pretendentes a jornalista, do tipo "olha só o mundo onde você quer entrar!".
Sobrepujando-se ao glamour, ponta mais visível da profissão, estão presentes aqui, como nas "Recordações...", a venalidade, o cinismo, as traições que perpassam uma redação de jornal, os "conluios com o poder", tudo visto sob a ótica de um profissional que não surgiu das elites da cidade.
Como fator de exacerbação desses defeitos, Roni Lima acrescenta ao clima descrito por Lima Barreto a violência predominante no Rio de Janeiro atual e o preconceito social que ele identifica nos cariocas da zona sul diante dos "suburbanos do além-túnel".
Inversamente ao Caminha de Lima Barreto, porém, seu herói, Affonso, não admite embarcar no que considera ser o "trem da alegria" do poder. Ao longo de sua tortuosa adaptação, vítima de uma ingenuidade ora comovente ora caricatural, ele sofre experiências e perdas emocionais de primeira grandeza, mas se recusa a abrir mão de sua pureza ideológica, não se dobra, acabando por adentrar um túnel que, ao contrário daquele que liga as zonas sul e norte no Rio, é totalmente sem saída.
Outra diferença -esta, radical- entre a obra de Roni Lima e aquela que a inspirou está no estilo do texto. Se Lima Barreto elabora seu livro como um artista, ou seja, numa entonação particular, torneando-a com tiques estilísticos próprios, Roni Lima o faz de maneira mais impessoal, compondo seu texto como se fosse uma reportagem.
Um enfoque benevolente veria aí uma opção metalinguística deliberada do autor, qual seja, a de contar uma história de jornalistas usando, para tanto, os clichês, conectivos e metáforas pré-fabricadas que caracterizam boa parte dos textos jornalísticos, além de adotar uma estrutura que em certos momentos, por exemplo, adianta os fatos principais (à guisa de "lide") para depois narrar como se chegou a eles.
Leia este trecho, exemplar no que se refere ao estilo de "Rio Bandido":
"Precisava se segurar a qualquer custo, para não botar tudo a perder. Mas era difícil, exigia muito sangue frio. Numa ensolarada manhã de segunda-feira, quando convidou-a a passear pelo centro, antes do trabalho, não conseguiu evitar o pior. Ele queria garimpar em sebos alguns livros sobre a evolução urbana do Rio e, ao cruzarem a Cinelândia, tradicional ponto de encontro político, um líder comunitário de favela (...)". Eis um texto bastante claro, quase jornalístico -e assumidamente pobre em termos literários.
Já um olhar crítico, talvez mais isento, captaria nisso uma limitação do autor, que não se libertou do seu ofício de dia a dia para escrever em estilo diverso, literário -um romance com todas as letras, enfim-, algo que espelhasse na arquitetura do texto certa vocação de perenidade que a reportagem comum nem sequer almeja.
Em raros momentos o autor supera, no estilo, o diapasão jornalístico. Isso ocorre marcadamente quando Affonso, levado por sucessivos desmoronamentos e decepções, encontra destino semelhante ao do Lima Barreto escritor, debatendo-se numa crise profunda (detalhes, aqui, negariam surpresas ao leitor). Mas aí já estamos no final da obra.
Ignorante, desleal, tirânico, complacente, pusilânime, malicioso, hipócrita, insincero, velhaco, farisaico, fraudulento, enganoso, pérfido, impudico e desonesto -esses são os adjetivos com que um autor americano, H.L. Mencken, classificou certa vez o jornalista (americano médio). O livro de Roni parece confirmar tal visão para o Brasil, mas ao mesmo tempo, por ser escrito por um membro da profissão, testemunha haver na categoria, também, e ainda que não generalizado, razoável senso de autocrítica.

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