São Paulo, segunda-feira, 9 de setembro de 1996
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Todo mundo nu no Xingu

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

O ministro fuma cachimbo. Às vezes pára de fumar, às vezes guarda o cachimbo, nem sequer ousa retirá-lo do bolso. Depende da barra.
O ministro fala de leis. Descreve as leis, critica, ironiza, justifica. Ele fala de leis com a intimidade que alguns falam de mulheres, outros de uma perfeita jogada do ataque de seu time de futebol.
O ministro se empolga: artigos, parágrafos, caputs se desdobram num mundo radioso para onde todos gostariam de ir, fugindo das imperfeições do universo não codificado.
O ministro trabalha. Seu gabinete dá para o verde da grama. Ele está montado num vulcão.
Voam pepinos pela sua janela. Massacres dos sem-terra, morte de PC, por acaso, intencional? Onde fica Eldorado dos Carajás? Perto do Curionópolis? Mas onde fica Curionópolis, meu caro?
O ministro viaja. Tá bem, não deixamos as drogas passarem, vocês proíbem o contrabando de armas. Como, não é possível?
O ministro navega na política externa e conhece uma nova lei, a do mais forte.
O ministro volta. Carnaval em Brasília. O filho é atingido com um soco no rosto, por um desconhecido, fratura o maxilar, 15 dias de hospital.
O ministro vai ao Xingu. Vê o rio, pede que se retirem os fotógrafos e, junto com amigos, mergulha nu nas águas límpidas.
Ninguém se importou com o mergulho. Mao Tse Tung nadou em três rios, para protestar contra a burocracia asfixiante. Os hindus banham-se no rio para se purificar.
O ministro tinha tirado o terno, a gravata, os sapatos para aprender com os índios que era bom mergulhar ali, naquele momento.
A única lei em vigor era a que nos devolve à natureza.
Foi bom para você? Ninguém perguntou ao ministro. As fotos saíram nas capas de jornais, o ministro com a cabeça de fora, pronto para mergulhar de novo onde todos os ministros deveriam mergulhar um dia: nas águas do Xingu.
Quem sabe os fotógrafos também, depois de enviarem seu trabalho, dos transtornos da transmissão, do medo do editor escolher a pior foto, quem sabe eles também não deram seu mergulho?
A foto do ministro correu mundo. Bateu na mesa de outros ministros, no princípio do outono para alguns. Devem ter pensado: há muitos problemas ali, mas aquele rio...
Os índios deviam chamar todo o governo do Brasil e oferecer um banho. O próprio presidente, se um dia aparecesse por lá...
Nossa imagem? Bem, podemos escolher duas alternativas: somos um povo que fica de gravata diante do rio ou tiramos a roupa e caímos na água?
É uma questão de escolha. Amantes não hesitariam: "Take me to the river/drop me in the water", diz a canção romântica.
Na primeira missa, apareceu uma índia nua. Os portugueses se precipitaram para cobrir "sua vergonha".
Séculos depois, os índios conseguem despir um ministro. É uma revanche histórica.
Ninguém viu nada disso porque todos se concentravam na nudez do ministro.
Lentes de 300, 500 milímetros espreitavam as águas do rio. Se o ministro ficasse de pé, seria eletronicamente executado.
O peru, encolhido pelas águas, iria para as mesas dos editores, como a cabeça do leão, empalhada nas mansões dos caçadores.
Modernas câmeras, computadores que enviam fotos por telefone, toda a tecnologia moderna se concentra entre as pernas do ministro. Os índios devem achar uma loucura.
Mas não os cientistas sociais. Richard Sennet ("The Conscience of the Eye", Norton) analisa os espaços específicos da autoridade na cidade moderna e conclui que eram precisos no passado, mas agora tendem ao vazio.
Antes disso, Sennet analisa a palavra autoridade, que vem do latim auctoritas, o guardião que protege aqueles que podem se proteger ou orienta aqueles que estão indecisos.
Pintados ou fotografados no interior de suas casas, como foi o caso da rainha Vitória ou de Sarah Bernhardt, celebridades apareciam como "de fato eram".
Até hoje, essa tendência se afirma nas revistas populares que entram dentro da residência para mostrar a "verdadeira vida" de um casal.
O ministro seria colhido em pleno Xingu, a milhares de quilômetros de sua casa. Sua verdade, documentada não mais no interior, mas no meio do mato.
Seria o triunfo da vontade de ver contra a privacidade. Vitória total das câmeras. Fim do santuário.
Fotógrafos bolchequives festejando a conquista de seu Palácio de Inverno: o peru molhado do ministro.

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