São Paulo, segunda-feira, 9 de setembro de 1996
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Falta-nos o bezerro de rua

JOSIAS DE SOUZA

São Paulo - Ulysses Guimarães batizou a atual Constituição de "cidadã". Poderia tê-la chamado de doidona. Constituição doidona.
Assim como meninos de rua, viciados em drogas, a Constituição também vive em um país de sonho. A Carta Magna também viaja.
"É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer..."
A Constituição pitou o mesmo cachimbo de crack que mantém os garotos de rua na fronteira do delírio. "...O direito à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária..."
Estamos perpassando o Brasil do artigo 227 da Constituição, onde crianças e adolescentes estão "a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência e opressão".
Abra-se espaço para uma escala no Brasil extraconstitucional. O que se vê nas ruas é a meninada entregue à própria sorte, ora pedindo e assaltando, ora matando barbaramente. Há um coro em favor da responsabilização criminal de garotos.
A idéia seduz a polícia -melhor prender meninos do que perseguir traficantes. Seduz a política, carente de discurso. Seduz o cidadão bem-posto, preocupado em afastar do raio de visão o filme que lhe chega pelo vidro do carro.
Não se deseja defender aqui o menor delinquente. Não, em absoluto. Alguns devem mesmo ser excluídos do convívio social. O que se quer é chamar a atenção para um detalhe: o menor não é senão vítima da violência. A prisão ajuda pouco.
Entre o país onírico da Constituição e o Brasil cruel das ruas, há uma sociedade omissa, culpada. Uma sociedade que trata cavalos e bois melhor do que crianças. Não há sob o céu, como se sabe, um único potro, um mísero bezerro de rua. Nossos meninos são, por assim dizer, uma raça subequina, sub-bovina.

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