São Paulo, sexta-feira, 13 de setembro de 1996
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O lugar da estrela

JOSÉ ARBEX JR.

entre exumação de ossadas e abertura de arquivos, o Brasil vem passando por uma fase de saudável e necessária recuperação crítica de seu passado recente. Sintoma disso é a publicação, nos últimos três ou quatro anos, de biografias, autobiografias e documentos históricos importantes, como "Olga" e "Chatô" (ambos do jornalista Fernando Morais), "Lanterna na Popa" (do deputado Roberto Campos) e o "Diário" de Getúlio Vargas.
O período de ditadura foi bastante contemplado na recente Bienal do Livro, quando foram lançados, entre outros, as memórias do ex-ministro Jarbas Passarinho ("Um Híbrido Fértil") e uma ficção de Marcelo Rubens Paiva ("Não És Tu, Brasil"). Nem todos têm a política como tema: "Estrela Solitária", de Ruy Castro, recupera a dimensão trágica e mítica do genial Garrincha.
"Oswaldo Aranha - a Estrela da Revolução" inscreve-se nesse contexto de recuperação da memória nacional, no caso estimulado pela passagem dos cem anos de seu nascimento (1894-1960). Os autores -Aspásia Camargo (socióloga e pesquisadora da FGV), João Hermes de Araújo (diplomata, no Itamaraty desde 1951) e Mário Henrique Simonsen (economista, ex-ministro), com prefácio de Francisco Iglésias- procuram resgatar sua dimensão histórica, eclipsada pelo brilho de Getúlio Vargas, seu "padrinho" e por vezes algoz.
"Oswaldo Aranha - Uma Biografia" (do brasilianista Stanley Hilton, 1995), e "Oswaldo Aranha, o Rio Grande e a Revolução de 1930" (de Luiz Aranha Corrêa do Lago, neto do biografado, 1996) também recuperam a importância do "delfim" de Vargas. A diferença é que a presente obra analisa em profundidade as várias facetas de Aranha, dando aos fatos uma perspectiva que só especialistas podem oferecer. Há problemas, como veremos, mas eles não eclipsam o valor deste livro como referência aos que queiram conhecer melhor a história do Brasil e a da era Vargas, em particular.
O livro é dividido em três partes, cada uma escrita por um dos autores segundo sua área de maior especialização.
Aspásia Camargo concentra-se na discussão do papel de Aranha na política "interna". Mostra como Aranha foi o principal articulador da Revolução de 30 -a sua principal realização (a qual, não por acaso, dá título ao livro)-, e como, em momentos decisivos (por exemplo, durante a revolta paulista de 1932, quando era ministro da Justiça do governo provisório), soube costurar os acordos para garantir a sustentação de Vargas. Mostra também as divergências com o "chefe" (por exemplo, em relação aos excessos do Estado Novo, ou pelas apreensões que lhe causavam os acenos de Vargas a Hitler).
Para explicar a formação e ascensão de Aranha, Aspásia faz uma análise interessante de suas origens -a "república gaúcha", uma elite que devia sua originalidade e consistência ao intelectual e político Júlio de Castilhos, responsável pela implantação, no final do século passado, de um programa ideológico inspirado no positivismo de Comte. Esse "compromisso programático" positivista teria formado, no Rio Grande de Sul, uma "poderosa elite orgânica", materializada no PRR (Partido Republicano Rio-grandense), "em meio à descentralização conservadora e gelatinosa da República Velha".
Isso explicaria, segundo Aspásia, o fato de que coube "a um clã de políticos gaúchos", entre os quais Aranha e seu amigo de juventude, Getúlio Vargas, a "missão de reformar o Brasil", inaugurando um ciclo histórico que seria encerrado apenas em 1985 com o mineiro Tancredo Neves, "leal presença no último ministério do segundo governo Vargas". A análise da trajetória política de Aranha ajudaria a destrinchar o fio de continuidade. Concorde-se ou não, essa análise traz novos elementos para uma reflexão sobre o fascínio que Vargas ainda exerce, 42 anos após o seu suicídio.
Na segunda parte do livro, João Araújo analisa o diplomata Aranha (como embaixador em Washington, entre 1934 e 1937; como chanceler do Estado Novo, a partir de 1938 até 1944; e como representante do Brasil nas Nações Unidas, já no governo Dutra, em 1947). Os momentos mais importantes dessa fase são a ação de Aranha no sentido de aproximar o Brasil dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra, impedindo que o país concretizasse uma aliança com a Alemanha nazista, e o episódio da criação do Estado de Israel pela Assembléia Geral da ONU, em 29 de novembro de 1947, em sessão por ele presidida.
Simonsen, finalmente, retoma a atuação de Aranha à frente do Ministério da Fazenda, em dois momentos complicados: entre novembro de 1931 e julho de 1943 (primeira fase do governo Vargas), e de junho de 1953 a agosto de 1954 (o fim da era e da vida de Vargas). A primeira fase é marcada pela Grande Depressão que se seguiu à quebra da Bolsa de Nova York (1929), quando o Brasil sentiu em cheio o impacto da crise, já que a superprodução do café (seu principal item de exportação) combinava-se com a queda dramática dos preços do produto no mercado mundial. Na segunda fase, Aranha tenta adaptar o Brasil ao mundo da Guerra Fria, quando os Estados Unidos priorizavam a recuperação da economia européia (com o Plano Marshall) e asiática (em particular, com os investimentos no Japão).
Aqui, novamente, concorde-se ou não com Simonsen, o livro oferece uma grande oportunidade de refletir sobre o lugar do Brasil no cenário econômico internacional, em épocas de grande turbulência e que exerceram influências duradouras sobre os anos ou as décadas seguintes.
Agora começam os problemas. O livro é excessivamente apologético. Tende a descrever Aranha como uma espécie de herói "puro" e injustiçado da democracia, contra os demônios que o cercavam. Mais ou menos como um leninista descreveria Lênin.
Por exemplo, Aspásia afirma que "ao regressar dos Estados Unidos, depois do Golpe de 1937, (Aranha) acaba assumindo a contragosto o Ministério das Relações Exteriores, a despeito de suas críticas ao novo regime" (pág. 26). Por sua vez, João Araújo assevera que "Aranha, na verdade, chegava ao Brasil como símbolo de oposição às correntes nazi-fascistas que, mesmo dentro do ministério, desejariam extrapolar para o campo internacional as idéias e os princípios adotados na Constituição de 1937. Foi, principalmente, para evitar essa transposição que Oswaldo Aranha decidiu aceitar, em março de 1938, o Ministério das Relações Exteriores" (pág. 173).
Há aqui, no mínimo, uma grande dose de ingenuidade. Desde o começo de sua carreira, Aranha esteve comprometido até o pescoço com o projeto da oligarquia rio-grandense, a quem devia fidelidade e com quem conspirava. Se, publicamente, Aranha nunca demonstrou ímpeto de disputar a Presidência com o "chefe", isso não quer dizer que ele era infenso à tentação do poder. Admita-se ou não, Vargas foi um feroz ditador (que o digam as vítimas de Filinto Mller) e Aranha foi o principal ministro da ditadura.
Além disso, Aranha admirava Mussolini e era racista. Seu racismo, de origem positivista, à época dominante entre as elites, pode ser facilmente depreendido de uma nota transcrita na pág. 90: "Temos defeitos graves, entre os quais se avulta a tendência crítica, a desconfiança inata, a preguiça malsã, o horror às responsabilidades e um sentimentalismo extravagante, creadores de nosso ambiente político e social dispersivo e anárquico. Mas isso é menos do Brasil e mais um fenômeno comum a todas as raças em período de formação inicial. Estamos atravessando a era da cruza da mestiçagem e, por que não confessar, a hora da mulatice política, econômica e social".
Seu preconceito foi também constatado por obras como "O Anti-Semitismo na Era Vargas", de Maria Luiza Tucci Carneiro (Brasiliense, 1988) -que mostrou como alguns bilhetes de Aranha a Vargas denunciavam a contratação, pelos Matarazzo, de judeus estrangeiros em situação irregular- e "O Brasil e a Questão Judaica", de Jeffrey Lesser (1995). O fato de a atuação de Aranha ter sido decisiva para impedir a aliança entre Vargas e Hitler, e para a criação do Estado de Israel, apenas demonstra que, em seu caso, o senso de oportunidade política falava mais alto do que certas convicções pessoais, o que não deixa de ser um mérito para alguém que se pretendia estadista.

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