São Paulo, sexta-feira, 13 de setembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A necessidade da contingência

FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA

se concordarmos que as aporias são estímulos indispensáveis à reflexão filosófica, teremos de convir que as tentativas de pensar a articulação entre tempo e história são as que melhor representam este vezo paradoxal próprio do gênero. Com efeito, não seria demasiado exagero afirmar que as concepções filosóficas, que se debruçaram sobre o tempo humano, são bem mais interessantes pelas contradições e dificuldades levantadas do que pelas soluções que apresentaram. Isto se deve, provavelmente, a que a singularidade do problema reside justamente no seu caráter dúplice, ao qual já se referia Santo Agostinho: nada mais familiar que o tempo e, no entanto, nada mais difícil de apreender. A primeira e a mais banal das constatações é que as ações humanas se dão no tempo; todavia, nada mais difícil de explicar que o modo como isto ocorre.
O livro de Ivan Domingues defronta-se de maneira ousada com a tarefa de desmontar as armadilhas da experiência imediata de nossa vivência temporal e com o trabalho de revisão crítica das soluções metafísicas que interpuseram uma distância intransponível entre o conceito e a experiência do tempo.
Estas duas atitudes opostas, empenhadas no indefinido prolongamento de um combate, estabelecem um jogo perverso que contribuiu significativamente para a multiplicação das dificuldades. Se considero o tempo na natureza, a determinação do encadeamento sucessivo dos fenômenos me obriga a considerar, na linha causal de compreensão dos eventos, a simultaneidade do "antes" e do "depois", para evitar a dificuldade da vinculação do efeito presente à ação de algo inexistente, dado que submerso no passado. Se considero o tempo da consciência, tanto o futuro quanto o passado aparecem como modalidades de um presente a partir do qual a consciência visa intencionalmente aquilo que "já" não é e aquilo que "ainda" não é.
Como inserir o acontecimento histórico em qualquer destas posições, sem sacrificar sua singularidade? A presença teoricamente simultânea do anterior e do posterior na linha do tempo reduziria a história a uma física das ações, anulando qualquer diferença entre o fato bruto e o evento histórico. A transformação do passado em imagem pura e simplesmente visada a partir do presente da consciência, prolongada em voz narrativa, reduziria o passado a uma extensão retroativa do presente, pondo em risco a dimensão objetiva da memória e privilegiando o tempo psicológico ou, no máximo, atingindo a dimensão metafísica do tempo da interioridade.
É na riqueza própria de cada uma destas posições e na função que ambas podem cumprir no conhecimento que o autor detecta o risco das ilusões unilaterais.
Pois, quando o historiador vê no encadeamento dos fatos a matéria histórica supostamente lá depositada, esquece que a esta sedimentação precedeu a ação efetiva dos homens mediada pelo tempo na irreversibilidade do seu transcurso humano. Seria o corpo da história sem o espírito do tempo.
Quando o filósofo faz do tempo o movimento da consciência nos seus atos de articulação intencional, é levado a desprezar a matéria histórica, como se as ações humanas se sucedessem na duração sem se revestirem das formas materiais dos eventos concretos. Seria o espírito do tempo sem o corpo da história.
O que falta em ambas as perspectivas é a consideração da experiência integral da história, feita de fluxo do tempo e de descontinuidade material. Mas em que elemento da vida histórica encontrar, como que consubstanciados, o fato e o vivido, o resultado e o processo, para que possamos nos libertar do exclusivismo dos pares história/natureza, história/consciência, sem cair nas malhas de outro par, talvez mais perigoso, história/ficção?
A resposta, aparentemente simples, acarreta, no entanto, problemas de extraodinária complexidade, aqueles mesmos que vêm perseguindo desde sempre as teorias da história.
Não há compreensão da história sem a consideração da "ação". É ela que nos abre a possibilidade do conhecimento histórico na sua especificidade. Todo fato histórico supõe o ato e o agente. Mas afirmá-lo simplesmente é enredar-se nas dificuldades inerentes a postulados contrários: o determinismo do fato, afirmado pelas epistemologias racionalistas, e a liberdade do ato, reivindicada por algumas metafísicas da subjetividade. O debate acerca do determinismo e da contingência não poderia deixar de estar presente no processo de constituição da história científica, mas é óbvio que a discussão, na sua origem, está comprometida com questões metafísico-teológicas acerca da ordenação do mundo. No que diz respeito ao tempo, o que está em jogo é a maneira de conceber a relação entre tempo e eternidade.
A precedência da eternidade não se relaciona apenas com a onisciência divina e o poder ordenador de Deus, que subordina o curso da história aos desígnios da Providência, mas também às teodicéias que concebem a organização dos eventos e a teleologia imanente como provenientes diretamente da sabedoria divina, o que confere à história uma racionalidade afirmada como princípio e ao homem uma direção ética caracterizada pela harmonia entre a vontade individual e a vontade divina racionalmente presumida.
Temos aí não apenas uma subordinação do tempo à eternidade como também uma subordinação da temporalidade imanente dos eventos a uma ordem eternitária. A tradição filosófica sempre manifestou a hierarquia de valor que corresponde à precedência do ser em relação ao devir. Neste sentido, é natural que o tempo estivesse sempre inscrito na eternidade. Este princípio de permanência, concebido na sua máxima perfeição, evidentemente anula qualquer pretensão teórica a uma ontologia da ação que se sustente autonomamente.
Mas o que o autor nota com perspicácia são as consequências da reação extremada à perspectiva eternitária: a afirmação da contingência radical a ponto de repudiar qualquer esquema de representação da permanência anula inclusive a possibilidade de se representar o contingente. O tempo concebido unicamente no seu caráter fluente não permite nem mesmo a representação da pura duração. Isto significa que, em relação à história, a contingência pode se revelar tão abstrata quanto o determinismo absolutamente necessário. Se não há algo dado como o eterno presente, ao menos para a mente do homem, tampouco se pode pensar numa experiência do tempo vazia de conteúdos subsistentes na duração histórica.
É neste ponto que o autor introduz o que nos parece ser a tese central do livro.
Para que a experiência integral da história possa ser estruturada a partir da ação como elemento nuclear, é preciso que o tempo do mundo e o tempo vivido pela consciência sejam de alguma maneira integrados, muito simplesmente porque não existe ação sem agente e compreensão histórica sem sujeito. Se, de um lado, existe o transcorrer da história no tempo das ações, de outro, deve existir a atividade subjetiva que apreende este transcurso de modo a que ele constitua propriamente a ordem histórica.
Daí a perspectiva transcendental, que propõe, à semelhança da "Crítica da Razão Pura", de Kant, uma dupla origem para o conhecimento histórico: de um lado, o dado de fato; de outro, os elementos que me permitem pensá-lo. Quando o empírico-factual é compreendido como o mundo da ação, o caráter prático de que ele então se reveste me permite pensá-lo como o encontro de conteúdos temporais com condições de possibilidade de sua ocorrência e de sua compreensão. Por exemplo, o dado de fato empírico só pode ser historicamente compreendido quando o penso a partir de um quadro temporal (o tempo do acontecimento), a partir dos agentes que desencadearam a ação e da própria ação na dinâmica da incorporação do tempo da consciência ao tempo do mundo. Não existe o múltiplo histórico em si mesmo objetivo; de outro lado, as ações não são meras aparências inutilmente acrescentadas a um cosmos estranho ao homem. O devir é compreensível no entrelaçamento dos atos e dos fatos.
O acontecimento é, pois, "o modo de ser do devir". Mas acontecimento significa tanto permanência quanto transformação. De um lado, a ação que o provoca é nova e imprevisível; de outro, o teor próprio do acontecimento o implica num "nexo de necessidade" que permite a leitura do tempo histórico em termos de ligações derivadas da possibilidade de ações engendrarem outras ações, sem que por isso a necessidade inerente ao tempo do mundo absorva a dinâmica intencional dos atos.
A liberdade do sujeito histórico se estende à história; mas os acontecimentos que ela engendra podem ser compreendidos nos termos das condições da experiência histórica. "Sistema de permanência" e "princípio de transformação" podem assim coexistir, desde que uma "abordagem prático-transcendental" assegure a correta compreensão do "medium" em que a liberdade se exerce. E desde que não pensemos, como a pomba de Kant, que voar no vácuo da contingência seja mais fácil que vencer a resistência da necessidade.

Texto Anterior: O lugar da estrela
Próximo Texto: Sócrates bailarino e construtor
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.