São Paulo, sexta-feira, 13 de setembro de 1996
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Por uma nova retórica

ROBRINSON GUITARRARI

a maior parte dos estudos sobre os modos de inferência trata daquelas provas que exibem, na cadeia de raciocínios, ligações necessárias entre os enunciados que as compõem. Contudo, as técnicas para convencer um oponente vão muito além das apresentadas pelos lógicos. Em particular, quando se considera o conteúdo mesmo das premissas apenas como verossímil, e não necessariamente verdadeiro, certos recursos persuasivos são, de fato, utilizados para convencer alguém de que algo é o caso. Poderia, de alguma forma, esse domínio, que ao longo do tempo foi posto em segundo plano, ser sistematizado? Perelman e sua colaboradora Olbrechts-Tyteca crêem que sim.
O "Tratado da Argumentação", cuja primeira edição em língua francesa data de 1958, marca, em nosso século, a retomada das investigações sobre o papel desempenhado pela arte retórica no âmbito da argumentação, que, segundo os autores, engloba os raciocínios cujos pressupostos assumidos e inferências admitidas não levam a uma necessária aceitação do que se segue.
No entanto, este estudo sobre a técnica de utilizar a linguagem ordinária para persuadir e convencer é apenas parte da tarefa proposta nesta obra. Seu objetivo central é fornecer uma idéia de "razão" que melhor se ajuste aos raciocínios utilizados nas ciências humanas. A estratégia consiste em enfraquecer a noção de prova, identificando-a com a apresentação de um argumento eficaz. Assim, os autores esperam que o tratado "provoque uma salutar reação e que impeça, futuramente, que se reduzam todas as técnicas de prova à lógica formal e que se veja na razão apenas uma faculdade calculadora" (pág. 576).
A relevância do problema é notória. Afinal, se os resultados podem ser considerados indiscutíveis em algum domínio, esse parece se restringir ao das estruturas da lógica-matemática associadas a linguagens formalizadas, em que se definem, sem ambiguidade, noções, como a de verdade e de consequência, que permitem determinar uma certa relação de necessidade envolvendo sentenças e conjuntos de sentenças. Mas tomamos, constantemente, uma postura avaliativa a respeito de considerações sobre os mais variados temas e, nestas circunstâncias, nem todo raciocínio utilizado se reduz àqueles que empregamos, por exemplo, quando pensamos dentro de um sistema lógico. Cabe, então, a pergunta: haveria algum tratamento sistemático que concedesse a tais raciocínios o devido valor?
Segundo os autores, a resposta reside em uma teoria da argumentação que leve a sério o papel exercido pelo discurso retórico e constitua, assim, uma ruptura com a concepção clássica de razão e raciocínio. Argumentar teria como principal objetivo "aumentar a intensidade de adesão dos espíritos às teses que se apresentam a seu assentimento (...), de forma que desencadeie nos ouvintes a ação pretendida ou, pelo menos, crie neles uma disposição para a ação" (pág. 50). Desse modo, seria preservada a idéia da retórica antiga, segundo a qual toda argumentação deve ser desenvolvida em função do tipo de auditório que se deseja persuadir: "a natureza do auditório (...) determina em ampla medida tanto o aspecto que assumirão as argumentações quanto o caráter, o alcance que lhes serão atribuídos"(pág. 33). Àquele que argumenta cabe, então, presumir o tipo de público que se lhe apresenta, adaptando seu discurso em todo o desenvolvimento argumentativo.
Nessa abordagem, o apelo a uma autoridade no assunto ou à misericórdia do ouvinte, por exemplo, não seria totalmente desconsiderado. Todavia, pelo fato de suas premissas não oferecerem qualquer evidência para a aceitação da conclusão, estratagemas como esses são deixados de lado numa perspectiva tradicional, na qual o público-alvo é visto como sendo composto apenas por seres racionais. Mas, argumentam os autores, ao lado desse "auditório universal", existem outros tipos de ouvintes que poderiam vir a ser persuadidos.
Depois de exibirem, em sua primeira parte, os termos em que tal sistematização será elaborada, destacando as noções básicas, as restrições e algumas dificuldades que envolverão a análise, os autores examinam algumas técnicas retóricas usadas na apresentação dos acordos, entre orador e auditório, necessários para o desenvolvimento da argumentação. Trata-se de mostrar artifícios que buscam estabelecer uma base comum acerca das premissas, dos dados. A idéia é impedir que o auditório não lhes adira, seja por perceber o seu caráter unilateral, seja por não aceitar a interpretação que se lhes dá no contexto discursivo. Por exemplo, o discurso epidíctico, que trata do elogio e da censura, poderia ser utilizado por um advogado, buscando aumentar a intensidade da adesão do ouvinte a certos valores que constarão em sua argumentação. As noções, que, ao lado dos fatos e dos valores, constituem outra espécie de dado, podem ser apresentadas nas premissas de uma forma sujeita a várias interpretações, se forem fundamentais à concepção a ser combatida, ou da forma mais clara possível, se estiverem vinculadas às teses que se procura defender.
A aplicação de recursos persuasivos não está limitada ao ponto de partida de uma argumentação, mas se estende a todo o seu desenvolvimento. A partir de uma classificação de esquemas de argumentos, os autores procuram mostrar a relevância da ordem dos raciocínios para o condicionamento do auditório. A escolha acerca da disposição dos raciocínios no discurso deve levar em conta o modo como este se apresenta em sua forma mais forte. Argumentos que nos conduzem a uma mesma conclusão devem ser apresentados de modo que tornem evidente essa convergência. A ordem nestoriana, segundo a qual cumpre começar e terminar com os argumentos mais fortes, em geral, deve ser preferida à ordem crescente ou decrescente de força. Todavia, deve-se ter claro que dicas como essas não são independentes da situação argumentativa. Como frisam os autores, "a ordem é objeto de uma escolha cuja única regra é a melhor adaptação possível aos sucessivos estados do auditório, tais como imagina o orador" (pág. 567).
Uma das críticas feitas a este tipo de trabalho é que ele envolveria uma abordagem psicologista, na qual a argumentação visa a obter, por meio do discurso, uma ação desejada sobre os espíritos dos ouvintes. A eficácia argumentativa poderia, então, ser testada pelos mais variados e conhecidos tipos de auditório. Perelman entende que não é este o caso. O que se pretende é analisar diversas estruturas argumentativas a partir do exame de pronunciamentos de publicitários, advogados, juízes, filósofos, "sem fazer preceder qualquer prova experimental à qual se quisesse submeter sua eficácia" (pág. 10).
Não obstante este esclarecimento sobre a natureza do tratado, parece haver duas dificuldades que lhe são pertinentes. Ainda que o tratamento dado não se reduza a um ramo da psicologia experimental, há um aspecto psicológico que se faz presente na pressuposição do orador quanto ao tipo de auditório para o qual a argumentação se dirige. Este aspecto torna difícil a decisão sobre o melhor argumento em uma dada situação. Como, na prática, seria possível operacionalizar, com sucesso, a sistematização oferecida? A outra dificuldade diz respeito ao modo como esta teoria, cujas noções e distinções não são nem pretendem ser filosoficamente elaboradas, poderia ter a repercussão filosófica tencionada. A esses problemas não encontramos resposta alguma no tratado.
Recuperando concepções que remontam à Antiguidade clássica -em particular, a Aristóteles dos "Tópicos" e da "Retórica"-, Perelman, em seu esforço para fornecer um complemento de uma teoria da demonstração (pág. 11) e obter, como corolário, uma idéia de razão mais adequada à prática argumentativa, principalmente das ciências humanas, fez escola no Centre National Belge de Recherche de Logique. Mesmo sendo apresentado como introdutório, o "Tratado da Argumentação" tem a sua contribuição reconhecida em vários estudos que propõem aplicações ao direito, à pedagogia e à propaganda política, a partir de idéias nele desenvolvidas ou por ele lançadas. Mas, como o próprio Perelman concordaria, cada leitor deve julgar a sua eficácia.

Nota:
1. Cf. "Ética e Direito" de C. Perelman, Martins Fontes, 1996.

Robinson Guitarrari é mestrando no departamento de filosofia da USP.

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