São Paulo, sexta-feira, 13 de setembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Vamos ao dicionário!

VICTOR KNOLL

o "Dicionário Oxford de Arte" é herdeiro dos três "companions" -o de arte, o das artes decorativas e o da arte do século 20- organizados e editados por Harold Osborne que, em 1950, aliou-se a Sir Herbert Read para juntos fundarem a Sociedade Britânica de Estética. Tais são os compromissos imediatos deste dicionário que, por sua vez, tem o propósito de fornecer referências básicas sobre artistas e formas artísticas ocidentais, cobrindo o arco histórico da Antiguidade Clássica até meados do século 20 e não incluindo nenhum artista que tenha nascido depois de 1945. O leigo encontra aqui o esclarecimento necessário para tornar compreensíveis suas leituras ou visitas a museus e, de seu lado, o estudioso dispõe de um instrumento de consulta sempre útil para o seu trabalho.
As omissões de autores e o tratamento dado a certos conceitos permitem-nos surpreender a linha teórica que orientou a organização do dicionário. Explica-se dessa maneira a razão de determinados artistas ou movimentos artísticos terem sido contemplados com maior ou menor espaço.
Não deixa de ser curioso o fato de o livro de Osborne, "Aesthetics and Art Theory"(1), abrir um capítulo para a "Crítica do Juízo" de Kant e silenciar a respeito das lições sobre estética pronunciadas por Hegel. Sob a mesma inspiração, o verbete "Kant" tem o seu lugar assegurado no dicionário (aliás, com óbvia justiça); mas, se o leitor procurar alguma informação sobre Hegel ficará de mãos vazias. Sim, Hegel, aquele que edificou o mais orgânico sistema das artes ou, se se preferir, que pela primeira vez concebeu a estética como um sistema.
Da mesma maneira que um tratado de história assume uma ótica para a interpretação dos acontecimentos, compreende-se que um dicionário que lista fundamentalmente artistas e movimentos artísticos não pode se furtar à escolha de um ponto de vista. Atrás da serenidade olímpica que emana da sequência de verbetes há compromissos teóricos. De fato, não poderia deixar de haver, pois na realidade é um dicionário de (ou de uma) história da arte.
O consulente do dicionário, como o leitor de qualquer manual de história, deve estar atento para tais compromissos. Assim, juízos de valor acerca das obras são o pano de fundo dos verbetes e não, por exemplo, a sua compreensão pelo modo segundo o qual expressam a vida espiritual da comunidade à qual pertencem. O próprio dicionário nos dá a pista. Basta consultarmos "Estética", um verbete, sem dúvida, decisivo para um dicionário como este: "Termo definido pelo 'Oxford English Dictionary' como 'a filosofia ou a teoria do gosto, ou da percepção do belo na natureza e na arte' ". A definição do referido vocabulário é a de uma escola. O lexicógrafo não é, certamente, um inofensivo "escravo do trabalho", como pretende Chilvers na introdução. Compreende-se assim que, ao tratar dos traços principais da obra de determinado artista, sejam prioritariamente lembrados pontos concernentes ao estilo e à temática. O gosto constitutivo do estilo e eleitor da temática.
O termo "ideal" submetido ao critério estético guiado pelo valor encontra em Bellori a sua formulação e, mais uma vez, Hegel sequer é referido; justamente quem dotou o termo "ideal" com a mais forte carga conceitual, pois em sua reflexão estética exprime a própria realidade da obra de arte.
Apesar do incontestável valor e seriedade do dicionário da Oxford University Press, certos pontos despertam nossa atenção e nos causam algum desconforto.
Se, de modo geral, a extensão dos verbetes relaciona-se com a importância do tema tratado, certos casos escapam desse princípio organizador estabelecido na introdução do dicionário; isso pode-se observar não só na intervenção brasileira, mas mesmo na distribuição desproporcional do espaço para alguns verbetes. Assim, não é compreensível que tenha sido dedicada a mesma atenção para "perspectiva" e "mármore" ou "junk art". É engraçado que os verbetes relativos aos Museus de Arte Moderna do Rio de Janeiro e de São Paulo, cada um deles, sejam um pouco maior do que o de seu colega de Nova York.
Tendo em vista enriquecer o dicionário para a consulta brasílica, fez-se uma oportuna intervenção no original ao qual foram acrescentados nomes e manifestações artísticas nacionais. É certo, as queixas são fatais. O movimento concretista, por exemplo -quer se tenha simpatia ou repulsa-, não foi citado. O verbete sobre arte concreta se refere estritamente à cunhagem do termo por Van Doesburg e à definição estabelecida por Max Bill. Oswald de Andrade, será que foi esquecido? Basta procurar em "Andrade, José Oswald de Souza". Quem lembrará que o primeiro prenome de Oswald de Andrade foi "José"? O ingênuo leitor, na melhor das hipóteses, procuraria em "Andrade, Oswald". Certamente não foi preservado o espírito editorial que Ian Chilvers, seguindo os passos de Osborne, procurou imprimir ao dicionário. Man Ray não está em "Ray, Man".
Tendo presente os comentários já feitos sobre a tônica editorial que assegura unidade ao dicionário -o gosto, o estilo, a temática-, a intervenção brasileira desafina ao privilegiar os lados biográfico e social. De resto, pode-se dizer que, a seu modo, contribuiu para valorizar a obra.
Por derradeiro, importa fazer duas menções incompreensíveis e uma sujeita, no mínimo, à discussão: o termo "retrato", gênero tão presente na história da pintura, e "imitação", conceito que balizou a reflexão estética desde a Grécia clássica, simplesmente não constam do dicionário. Em terceiro lugar, os termos "iconologia" e "iconografia" são dados como equivalentes, quando Panofsky -no prefácio de 1966 à tradução francesa de seu livro "Ensaios de Iconologia"- já mostrara a especificidade de cada termo. Mas, mesmo assim, vamos ao dicionário!

Nota:
1. "Estética e Teoria da Arte", com tradução de Octavio Mendes Cajado, foi publicado pela Cultrix, sendo as duas primeiras edições em parceria com a Edusp.

Texto Anterior: Por uma nova retórica
Próximo Texto: O equilíbrio precário
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.