São Paulo, sexta-feira, 13 de setembro de 1996
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Intercâmbio de todos os planos

CARLITO AZEVEDO

as idéias de Pierre Reverdy sobre imagem e emoção poética, elaboradas no início do século -quando, ao lado de Apollinaire, Max Jacob, Juan Gris e Picasso, desenvolvia a chamada "poesia cubista"-, tiveram consequências quase antagônicas graças ao "desvio" imposto por dois poetas fortes: André Breton e W.C. Williams.
O objetivo de Reverdy era a criação de uma imagem poética a partir da aproximação de objetos selecionados na realidade, e não da comparação entre eles. Tanto mais forte seria a imagem quanto fossem longínquas as relações entre os pólos aproximados. Ocorre que, como lembra o crítico Jacques Darras, Reverdy impunha limites à abrangência dessa proposição. As relações podiam até ser longínquas, mas deviam existir, pois "duas realidades contrárias não se aproximam, se opõem". O sentido da limitação é preciso: impedir a perda de contato com o real.
Dessa proibição nasce o "desvio" de Breton. Encantado com a descoberta de Lautréamont, só pensava em explodir esses limites, seja pela exploração do inconsciente, seja pela eleição de uma beleza que seria convulsiva ou não seria. Embora dedicasse a Reverdy uma admiração significativa, algo de fundamental os separava. Breton afirma: "Apesar de tudo, nós o achávamos exclusivamente atento ao que, ao seu redor, era então a expressão poética correlata do cubismo". No desvio do surrealismo em relação ao cubismo está toda a diferença.
A poesia de Murilo Mendes (1901-1975) foi a mais legítima manifestação, entre nós, dessa rica tradição poética. E o estudo de Marcondes de Moura possui, entre outros méritos, o de atualizar a discussão para um cenário onde ela se tornou rara, graças ao predomínio do paradigma objetivista de Pound-Eliot-Valéry. Didaticamente, demonstra como Murilo, utilizando procedimentos da arte combinatória (colagem, montagem etc), pretendia abarcar uma totalidade, ou, no dizer exato de Mário de Andrade: "O intercâmbio de todos os planos". Essa idéia central lhe permitiu abordar diversos aspectos da multifacetada obra muriliana, tais como a religião, "o caráter não-especializado de sua lírica" e a constância de temas como o de Prometeu. O livro contém desde idéias mais gerais até análises cerradas de poemas, numa leitura quase à "new-criticism", não fora o fato de o autor jamais perder de vista o aspecto social e histórico da poesia. Em seu arranjo mais sutil, o livro mimetiza um pouco, em sua estrutura de montagem e colagem, a obra analisada.
A virada construtivista
Uma das intenções parece ser enterrar de vez a idéia de que, a partir dos anos 50, Murilo Mendes teria dado uma "virada construtivista". Argumentos não faltam a quem generalizou essa idéia, afinal, um poeta que pelo menos durante 20 anos flertou com o surrealismo não escreveria gratuitamente os versos de "Convergência" (1970): "Webernizei-me. Joãocabralizei-me./ Francispongei-me. Mondrianizei-me".
Por meio de uma argumentação, se não exaustiva (e não foi), ao menos bem armada, Marcondes chega à conclusão de que a virada não foi tão "virada" nem tão "construtiva". Contestando que Murilo teria "corrigido", ao longo de sua trajetória, "os excessos, até uma depuração formal", Marcondes maneja o conceito de dominante para demonstrar que se trata antes de incorporação do que de substituição.
Assim como acertou em cheio ao eleger a colagem como conceito-guia para observar a busca muriliana da totalidade, Marcondes, se aprofundasse mais a análise da colagem em si, teria resolvido melhor essa questão. Não como contestação ao livro, mas como sugestão de aprofundamento, é que citei no início a polêmica envolvendo Breton e Reverdy. Ao analisar as principais teorias da imagem do início do século, Marcondes passa rapidamente de Reverdy a Breton: "Foram os surrealistas que apresentaram os desdobramentos mais fecundos de suas idéias". Entretanto, a experiência reverdyana daria em algo mais identificável com a colagem cubista do que com a surrealista. Qual a diferença?
A colagem surrealista é onírica. Em "Max Ernst, Pintor de Ilusões" (1924), Louis Aragon diz: "Há uma diferença inata entre a colagem tal como praticada pelos cubistas e a colagem tal como a encontramos em Max Ernst. Para os cubistas, o selo postal, o jornal, a caixa de fósforos que o pintor colava ao quadro, possuíam o valor de um instrumento de controle da realidade do quadro. (...) Em Ernst, a coisa se processa de outro modo. Os elementos que utiliza são sobretudo desenhados. A colagem torna-se assim um procedimento poético, perfeitamente oposto em seus objetivos à colagem cubista, cuja intenção é puramente realista".
O real permeável
Se no primeiro Murilo predominam as colagens surrealistas, aquelas que tendem para o onírico, como nos versos de "O Emigrante": "A nuvem andante acolhe o pássaro/ que saiu da estátua de pedra./ Sou aquela nuvem andante,/ o pássaro e a estátua de pedra". Nos textos posteriores à década de 50, predominam colagens afinadas com o cubismo. A mudança de Murilo não se deu subitamente nem foi absoluta. Suas causas são estudadas detidamente no melhor capítulo do livro, "Poesia Liberdade", onde, a partir da análise de "Janela do Caos", Marcondes registra como a presença avassaladora da guerra obrigará os poetas a tomarem posição diante da morte de inocentes e do "ditador sentado na metralhadora". Até mesmo a fé religiosa de Murilo passa a ser mais permeável ao real: "Descubro um Cristo secreto/ (...)/ Não é o Cristo vitorioso/ dos afrescos catalães/(...)/ Nasce da falta de pão,/ Nasce da falta de vinho" ("Cristo subterrâneo").
Não quero fugir do problema do valor. Acredito que a fase mais predominantemente formalista, iniciada com "Sonetos Brancos" (1959) e que seguirá, com várias metamorfoses, até "Ipotesi" (1977), não seja tão boa quanto a primeira fase muriliana. Apesar de reunir momentos extraordinários, esses livros não foram tão bem resolvidos esteticamente quanto os anteriores. E como a questão do valor deve ser argumentada, os materiais com que Murilo passa a trabalhar nessa nova fase não se mostraram tão dóceis a seu toque. Enquanto na montagem surrealista Murilo saía-se admiravelmente bem, ao praticar a colagem de corte cubista, foi esquemático demais.
Nos textos de "Convergência" deparamos com poemas-molde: "Os arcanos do sol. Os arcanos do chão./ Os arcanos da cal. Os arcanos da Callas". Marjorie Perloff, criticando certo procedimento que se tornaria vício depois de Marinetti, afirma: "O princípio operativo estrutural é menos de colagem que de catálogo. Para dizê-lo de outro modo, os elementos parataticamente relacionados no texto não conservam sua alteridade". Perloff se refere a outro texto, mas, nesses poemas de Murilo, o princípio básico da montagem cubista, de equilibrar o que é representação e o que é "jogo construtivo", não se realiza, ou imperfeitamente.

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