São Paulo, sexta-feira, 13 de setembro de 1996
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O equilíbrio precário

JACÓ GUINSBURG

SÍLVIA FERNANDES TELESI

a pós "A Canoa de Papel" e "Além das Ilhas Flutuantes", duas obras fundantes do criador italiano Eugênio Barba (Salento, 1927), chega ao Brasil "A Arte Secreta do Ator", dicionário de antropologia teatral organizado por Barba, desta vez em parceria com Nicola Savarese. Dividido em 23 verbetes, que condensam as prioridades dos pesquisadores, é a mais completa abordagem de conceitos e práticas da antropologia teatral, campo de trabalho relativamente novo, que estuda o comportamento sociocultural do ser humano e o uso de sua presença física e mental numa situação de representação.
Discípulo de Grotowski, Barba desenvolve uma das pesquisas contemporâneas mais originais sobre o ator-bailarino, centrando interesse em questões de treinamento e evolução da expressividade. O eixo de sua investigação será definido em Opole, onde estagia três anos ao lado do artista polonês, em quem reconhece o mestre que o auxilia na conquista da autonomia criativa. Com um grupo de atores originários de contextos e tradições socioculturais diversos, cria em Oslo, em 1964, o Odin Teatret, garantindo um campo de ocorrência multicultural para sua experiência de teatro.
Dois anos mais tarde, o Odin se instala em Holstebro, na Dinamarca, onde Barba mantém até hoje seu centro de trabalho. Principiando suas atividades com a criação de espetáculos de ressonância internacional -"Kaspariana", em 1967, e "Ferai", em 1969-, o Teatro Laboratório vai englobar, paulatinamente, o programa de pesquisas sobre a arte do ator e a experimentação de novas hipóteses no domínio da pedagogia e da comunicação teatrais. Desde essa época, uma grande importância é dedicada ao treinamento físico e vocal e à improvisação, que serve de base para a invenção de espetáculos não convencionais, marcados pela ênfase nos processos criativos e pelo pouco interesse nos mecanismos posteriores de formalização da "obra".
Verdadeiro laboratório cultural, já nesse período o Odin produz filmes sobre o treinamento do elenco, organiza seminários e garante a publicação de suas pesquisas. Viajando com frequência, o grupo extrai dessas experiências o alimento para seus trabalhos. As atividades do laboratório se estendem a diferentes países da Europa e da América Latina, formando uma rede de grupos que se amplia nos vários continentes.
Em 1979, eles compõem a Ista (Escola Internacional de Antropologia Teatral), onde as tradições orientais e a troca entre as culturas são a pedra de toque das pesquisas. Baseadas no respeito e na manutenção das diferenças, as experiências de troca cultural visam à reelaboração das tradições gestuais e coreográficas dos participantes, com a gestação progressiva de uma nova proposta, que Barba chama de "terceiro teatro", e que não se liga nem ao teatro tradicional nem às vanguardas.
"A Arte Secreta do Ator" é uma súmula das propostas da antropologia teatral. Eugênio Barba pontua o trabalho com reflexões que semeiam as raízes fundamentais de sua pesquisa. Introduz o volume com uma definição de princípios onde, sempre fiel à pedagogia maiêutica, formula a questão que orienta não apenas o livro, mas toda a investigação da antropologia teatral. "Em quais direções os atores-bailarinos ocidentais podem orientar-se para construir as bases materiais de sua arte?"
Os verbetes do dicionário -anatomia, aprendizagem, dramaturgia, energia, ritmo, técnica- procuram responder a essa e a outras questões ligadas à criação do ator, filtrando da história do teatro as experiências que servem melhor a seus princípios de trabalho. A historiografia, como o próprio dicionário define, não é a memória da história ou um meio de apresentar eventos ligados ao teatro em sucessão cronológica. É, antes de tudo, um método de interpretação. No campo da indagação experimental, a antropologia teatral é o método para o estudo do ator no passado. Mas é, sobretudo, um modo de ver esse ator. Ela preserva um passado reconstruído com esse modo de ver.
É exatamente esse o procedimento adotado em todo o dicionário. Sua proposta é, na verdade, a releitura da história do teatro e dos processos e métodos de criação do ator, à luz das referências da antropologia teatral. Não apenas os ensaios de Barba e Savarese, mas todos os estudos do volume, assinados por pesquisadores da estatura de Franco Ruffini, Ferdinando Taviani e Richard Schechner, são a projeção de um modo específico de encarar o treinamento do ator para as mais diferentes experiências do passado e do presente, filtrando delas os princípios que governam a criação.
Como os princípios são similares, "A Arte Secreta do Ator" trata de desentranhá-la dos vários teatros que a história e as culturas produziram, funcionando como uma espécie de arqueologia que reaproxima representações distantes no tempo, no espaço e na estética. Formas tradicionais do teatro oriental, como o Nô e o Nabuki, a mímica moderna de Etienne Decroux, o teatro épico de Bertolt Brecht ou o "sistema" de Stanislavski, podem esconder princípios básicos comuns, mesmo que os transmitam por meio de experiências diferenciadas. Emprestando uma afirmativa de Decroux, Barba constata que, apesar de as artes não se parecerem por seus espetáculos, são semelhantes quanto aos princípios geradores.
Estudar esses princípios significa, para a antropologia teatral, encontrar uma base pedagógica comum, um "conjunto de bons conselhos" para o ator, que possa orientá-lo em seu trabalho. A busca do "equilíbrio precário" é um deles. De acordo com Barba, a "dança de equilíbrio" é revelada em todas as formas de representação, desde as posições básicas da dança européia ou o sistema da mímica de Decroux, até as posições corporais de várias formas de teatro oriental. Todas oferecem exemplos de uma distorção consciente e controlada do equilíbrio, causada por diferentes tensões que obrigam o corpo a encontrar uma nova situação.
A busca do "equilíbrio precário" não é, entretanto, uma escolha estilística, mas uma maneira de gerar a vida do ator. "O estudo do equilíbrio torna possível compreender como um equilíbrio em ação gera uma espécie de drama elementar: a oposição de tensões diferentes no corpo do ator é percebida cinestesicamente pelo espectador como conflito entre forças elementares", explica Barba no verbete "Equilíbrio".
Nesse sentido, pode-se dizer que as propostas da antropologia teatral transferem elementos tradicionalmente ligados à composição do texto dramático para o corpo do ator-bailarino. Um bom exemplo desse procedimento é a adaptação da tradicional definição aristotélica de peripécia na tragédia grega, a mudança repentina da fortuna em seu contrário, à criação do ator. Ela ganha seu correspondente na "peripécia física", a mudança que resulta de uma ação inesperada, quando um salto energético se opõe a uma postura de inércia.
Como se pode ver, o processo de releitura tem vantagens inegáveis. Para o "Dicionário de Antropologia Teatral", a história do teatro não é a história de espetáculos ou de linguagens artísticas, mas de uma cultura teatral que se manifesta muito mais nas práticas pedagógicas do que especificamente cênicas.
A partir desse enfoque, Appia, Craig, Fuchs, Stanislavski, Reinhardt, Vakhtangov, Meyerhold ou Copeaus são encarados como os grandes mestres de uma pedagogia cujo núcleo essencial é a formação de um novo ser humano. A força de suas propostas não pode ser medida pelo êxito de sua obra teatral, mas pelas tensões culturais que provocaram e conseguiram definir. A qualidade de sua pedagogia é o termômetro de seu projeto teatral.
Apesar de concordarmos com o procedimento, não deixam de causar certo desconforto algumas afirmações contidas nesta "Arte Secreta do Ator". Um exemplo é o ensaio de Franco Ruffini sobre Stanislavski, um dos itens do verbete "Historiografia". De acordo com Ruffini, para a análise do "sistema", o ponto de partida não pode ser a poética do diretor russo. Seu objetivo "nada tem a ver com as escolhas estéticas e operativas do diretor". Mantendo a distinção presente em quase todos os ensaios do volume, tanto Ruffini quanto a antropologia teatral (ou, pelo menos, aquela que se apresenta no dicionário) separam os procedimentos psicofisiológicos de criação, que chamam de "nível pré-expressivo", das escolhas poéticas ou estéticas posteriores. Trocando em miúdos, o que parece estar implícito nesse postulado é que os trabalhos de nível pré-expressivo não interferem na expressividade, ao menos a ponto de configurar um campo estético definido.
O que Ruffini defende em relação ao sistema de Stanislavski é que, ao menos enquanto possibilidade teórica e metodológica, existem fases do trabalho complexo do ator que "ocorrem antes da manifestação do sentido". E, uma vez que anteriores à constituição do sentido, apenas estabelecem as condições para sua manifestação na construção do papel. Podemos concluir, portanto, que são formas neutras de treinamento, que não interferem na construção de uma poética.
A prova dessa afirmação, Ruffini tenta encontrá-la no próprio Stanislavski. Numa passagem do livro "A Preparação do Ator", ao comentar seu próprio sistema, Stanislavski afirma que "não se trata de realismo ou naturalismo, mas de um processo indispensável para a nossa natureza criadora". O que Ruffini trata de provar com a citação é que, quando Stanislavski fala de verossimilhança ou de verdade, está, de fato, se referindo à presença orgânica do ator no palco. Apesar de ainda não saber, propõe por antecipação o "corpo-mente orgânico" da antropologia teatral.
O mesmo acontece em relação aos exercícios da biomecânica de Meyerhold. De acordo com Barba, as posturas instáveis, a dinâmica dos contrários e a dança da energia são termos que o encenador russo usa para nomear os mesmos princípios que a antropologia teatral encontra na base do nível pré-expressivo do ator.
Essas discordâncias não invalidam, entretanto, a importância deste dicionário. É um trabalho de referência para atores e não-atores interessados na cultura e nas amplas possibilidades que o trabalho de criação pode conter.
Finalmente, não podemos deixar de mencionar a pesquisa de Luís Otávio Burnier, supervisor da ótima tradução dos ensaios deste dicionário. Membro fundador da Ista, Burnier criou no Brasil o grupo Lume, ligado à Universidade de Campinas, onde desenvolvia suas próprias investigações de antropologia teatral. Morto precocemente, Luís Otávio nos deixou a memória de sua prática e sua reflexão. O trabalho fundamental desse grande criador é mais uma prova de que arte e pedagogia podem caminhar juntas.

Jacó Guinsburg é professor titular aposentado de estética teatral da Escola de Comunicação e Artes da USP e autor de "Aventuras de uma Língua Errante: Ensaios de Literatura e Teoria Idiche", entre outros.

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