São Paulo, sexta-feira, 13 de setembro de 1996
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Que desapareçam as rugas das testas de grandes chefs

Daniel Boulud fica um pouco mais cansado em Nova York

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Como entrada, uma sopa fria daquele milho muito doce, abobrinha e lagosta. Por cima, um fio de ovas de lagosta e salsa picada.
A cumbuca de sopa vinha sobre gelo picado e a lagosta, em pedaços. Não havia necessidade da abobrinha, que só sabe aguar por onde anda.
A salada era um "mesclun" (primeiras verduras, tenras, misturadas) com queijo branco, dentro de uma cestinha crocante de parmesão.
Como pratos principais:
1) Vieiras sobre um purezinho verde, cebolas carameladas e alcaparras mínimas
2) Codorna recheada com foie gras, figos roxos e prosciutto, sobre espinafre e nabos tenros
3) Escalope e timo de vitela passados na frigideira com camomila fresca e dezenas de legumes de verão.
Sobremesas do outro mundo: tartelette de pêssego, suflê de pistache, crême brulée, e mais não me lembro.
Gostei de ver o chef Daniel, um pouco mais cansado ou maduro, duas ruguinhas incipientes na testa, óculos. Cada dia mais acessível e simples, quero dizer, normal.
Passeia por entre as mesas, conversa com os clientes, senta-se nas mesinhas da calçada, novidade de verão.
Convida os brasileiros a conhecerem a cozinha, um prodígio de eficiência para o tamanho.
Tudo brilhando de limpo, as panelas de ferro fulgurantes, uma coreografia disciplinada que permite o máximo de gostosura no mínimo de desperdício de tempo, de espaço e de ingredientes.
O chef pâtisseur, François Paillard, tem um canto da cozinha -nem um canto, uma quina-, de onde faz sair o que há de mais fino e delicado em doces.
Vão abrir um lugar só de pâtisserie, para levar para casa, encomendar, comer ali mesmo, sucesso certo.
Ruga
Fico com um pouco de pena daquela ruga na testa do Daniel. Tudo bobagem da minha cabeça.
Mas um homem que cozinha tão bem, que encontra um prazer tão grande na beira do fogão, se vê de repente amarrado num esquema de investimento enorme, pois qualquer coisa em Nova York deve ser um investimento enorme.
É obrigado a atender a grande boca da cidade -e como a cidade é voraz! Não pode deixar cair a peteca por meio minuto, pois todos estão atentos.
O Zagat está atento, o "New York Times" está atento, o mundo inteiro está atento a qualquer falha. Salgou a lagosta? The king is dead, save the king!
Abriram agora um catering service, como se o restaurante não fosse trabalho suficiente. É um galpão no Harlem e dá muito trabalho, mas é preciso. Ganhar dinheiro é preciso.
A principal qualidade desses restaurantes, como Bouley, Boulud, Nobu etc., é fazer uma comida levíssima e linda.
Mas uma coisa no ar, uma intuição qualquer, me diz que essa cozinha extremamente refinada, que inspira "ahs" e "ohs" está para mudar. De puro cansaço. Simplesmente por não haver mais o que inventar.
O gostoso, fresco e leve veio para ficar, mas acho que o bonito em excesso vai passar (tanto que o Boulud tem nas costas de seu cardápio uma lista de clássicos que devem ser encomendados com antecedência; um deles é galinha assada...).
E assim, com menos frescura, mais em casa, mais à vontade, com menos preocupações, é possível que desapareçam as pequenas rugas de expressão dos grandes chefs da vida e o Boulud reencontre o prazer de estar entre amigos, divertindo-se também, sem malabarismos de segurar estrelas que já estão firmes neste céu azul de restaurantes.
Acho e espero que isso seja verdade, já que ninguém aguenta mais as peripécias obrigatórias, os embrulhinhos fritos escondendo miúdos regados com líquido de algas. Ah, um frango assado comme il faut!
É o bastante, por enquanto...

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